Ateliê Literário | Edição 39 - Dezembro/2023

Carta a Pero Vaz de Caminha; Canção – Pindorama a Gonçalves Dias; Portas da Memória; Legados para o Amanhã

Ilustração: Fernando Siniscalchi

Sônia Regina da Silva


Confira os textos da participante Sônia Regina da Silva, a partir da oficina “Perspectivas Pindorâmicas: literaturas Indígenas (sempre) contemporâneas”, ministrada em novembro pela escritora, professora e pesquisadora Fernanda Vieira na Biblioteca Parque Villa-Lobos. O encontro propôs novas perspectivas de Pindorama sobre o Brasil contemporâneo por meio das Literaturas Indígenas, estimulando uma abordagem criativa para a construção de (des)entendimentos sobre questões urgentes da contemporaneidade.

Boa leitura!

Carta a Pero Vaz de Caminha

            Não somos índios, tal como o homem branco assim nos subjuga. Somos indígenas e nos orgulhamos de nossas feições pardas, dos nossos rostos avermelhados, pintados de cores que revelam a nossa brasilidade. Assim como os cabelos lisos e pretos, caracterizam a etnia do nosso povo. Usamos cocar de penas de ave amarela, que é símbolo da nossa cultura, identificada pelos costumes, hábitos e tradições que particularizam as nossas tribos dos demais povos. Pois, o que há de errado nisso?!

            Andamos “nus” pelas nossas tribos. Mas, o “nu” do lado de cá são as nossas próprias vestes, das quais nada temos que nos envergonhar. Assim, somos livres de corpo e alma em busca da identificação com a natureza, que nos liberta das prisões terrenas, tal como o preconceito em relação ao diferente, criando, portanto, os falsos “tabus”. E, é fato quando você afirma, em sua carta, que a nossa terra, a natureza, é


[...] a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo d’agora os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas.
Em tal maneira é graciosa que, querendo a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem! [...]  

 

            Fomos alcunhados de sermos inocentes. Mas, temos a nossa inteligência e esperteza como qualquer outro ser humano dotado de suas particularidades. Pois, há anos que estamos visando à erradicação do preconceito contra o nosso povo, oriundo do homem branco que nos massacra com total ignorância e frieza. O que eles, talvez, não admitem é que somos os seus ancestrais.

            A nossa luta pela inclusão social é diária, trata-se de um direito humano sobre o qual não cabem contestações daqueles que se julgam nossos adversários. Enfim, queremos recuperar a nossa cultura “roubada” pelo colonizador que nos impôs hábitos alheios contrários aos nossos costumes, de forma abrupta e violenta. E, desse modo, nos dizimaram da forma mais sarcástica possível com a nossa deculturação e despersonalização. O que eles não perceberam ainda, seja pela dita “ingenuidade” ou não, é que indígenas morreremos, quer queira ou não o nosso opositor feroz, o “homem branco”.

            Atenciosamente,

            Sônia Regina Silva.

 

Canção – Pindorama a Gonçalves Dias

Minha querida terra já não tem mais palmeiras,

as palmeiras se foram, aniquiladas pela inconsequente devastação

florestal do europeu.

 

Querida terra, que nem sequer tem mais

abundância de aves;

Aves outrora tão abundantes, hoje,

estão quase em extinção.

 

Minha querida terra, já não tem mais estrelas,

não tem mais flores, não tem mais vida.

Tudo foi tragado pela poluição ambiental,

fruto da ambição do colonizador.

 

Querida terra, perdemos parte da nossa identidade contigo,

a ganância do homem branco, pelas riquezas aqui

encontradas, ceifou os nossos bens naturais.

 

Tudo se transformou em desprazer, quando nos forçaram

a mergulhar, abruptamente, numa cultura divergente

da nossa, pelo desamor à pátria alheia.

 

É um penar acreditar que o homem branco não tem consciência

de que somos os seus ancestrais, através de gerações e mais gerações.

E aqui por cá, continuaremos a lutar pela sobrevivência e conservação

do pouco da nossa cultura restante, dentro do contexto

de um mundo estranho e hostil que passou a nos integrar.

 

Queremos, somente, o retorno do canto das

nossas aves a gorjearem pelo céu límpido.

As nossas florestas mais saudáveis!

A preservação da nossa identidade

com a querida terra amada,

Que já não tem mais palmeiras;

Que já não tem mais abundância de aves;

Que já não tem mais estrelas;

Que já não tem mais flores;

Que já não tem mais vida;

Que já não tem mais nada;

Fruto da ambição do colonizador!

 

Portas da Memória

Eu sou o frescor da manhã, o calor das tardes ensolaradas da semana

e a friagem da noite ao espiar a lua cheia pela janela do quarto.

 

Eu sou o medo de subir no alçapão da casa, mas que sabia

vencer a insegurança de cair do alto para o chão do quintal.

 

Eu sou as traquinagens realizadas na antiga casa em que vivi

deliciosamente a minha infância.

 

Eu sou o tilintar das campainhas dos vizinhos e o cheiro das flores

arrancadas dos jardins mais coloridos da rua.

 

Eu sou as espécies raras de borboletas que eram caçadas,

durante as manhãs primaveris, e as pipas a sobrevoarem os telhados

e os fios elétricos a comporem o cenário da rua mais alegre do bairro paulistano.

 

Eu sou a pequenina da casa que adorava sentir o cheirinho do pão doce

com passas, que mamãe Cidoca fazia nas tardes de sexta-feira,

e, quando era possível, furtava, até mesmo, a massa crua a descansar

na pia da cozinha.

 

Eu sou a pizza de muçarela das noites de sábado, e o cheiro

de orégano a resvalar pela cozinha.

 

Eu sou o cavalinho de colo, todo sorridente, imaginado pela

vovó Luíza.

Ali, eu estava segura.

Ali, eu sempre estive salva.

 

Legados para o Amanhã

Em respeito ao povo indígena, podemos deixar, como legado para o amanhã, sérias reflexões de que são povos que carregam enormes ensinamentos e sabedorias propícias à domesticação do homem branco. Esse colonizador europeu, que se autointitula sábio intelectual, será sempre marcado como incivilizado. Suas ações cruéis e desumanas acometeram a cultura étnica dos indígenas, seus ancestrais de longos anos.