Edição 37 - Outubro/2023 | Entrevista

Democracia: a palavra e o sujeito político

Clarice Borges Pedro

O que a psicanálise tem a dizer sobre a política? E o que podemos pensar sobre sua relação com a literatura e a democracia? Nesta entrevista, Rodrigo Silva de Sá Pedro traz reflexões acerca do papel da palavra e da linguagem na articulação dos campos da Psicanálise, Política e Literatura. Nesse contexto, ele comenta sobre os desafios “hercúleos” e responsabilidades de todos diante de um mundo que evidencia o crescente aumento da intolerância e do fanatismo, notícias falsas e a existência de abordagens negacionistas da história e da identidade como ferramentas para atos políticos prejudiciais à sociedade. Para ele, a observação e a escuta, um olhar para si e para o outro, e a própria palavra como ação, são espaços que servem para elaborar “respostas” aos autoritarismos, aniquilamentos e fascismos cotidianos. Confira!


LBXII: O ideal da democracia remete às origens do pensamento democrático na Grécia Antiga e passa pelos eventos históricos que influíram na evolução política do mundo ocidental. Do que é feita a democracia?

Rodrigo S. de Sá Pedro:  Bem, importante lembrarmos que a democracia é o poder nas mãos do povo e, como bem colocado, surge lá na Grécia Antiga. Existem inúmeras maneiras de definir e pensar sobre política e, portanto, definir tal conceito não é uma tarefa simples. Partindo do referencial grego que estamos abordando, podemos pensar que a política surge como uma alternativa à guerra e assim os conflitos passam a ser possíveis se darem no campo da palavra. Sabemos que os gregos foram criadores da democracia (Demos - Povo/Kratos - Poder) e com isso inauguraram a sistematização do conhecimento a respeito da política na história do pensamento ocidental. A democracia, portanto, surge juntamente com esta ideia da política visando o bem público, coletivo e comum. Ainda que a democracia não tenha nascido genuinamente democrática, pois na Grécia Antiga apenas homens, cidadãos atenienses acima de 18 anos tinham direito de voto, nasce a partir desta ideia de, como falado acima, o poder ser eleito e emanado da população. Pensando, neste conceito grego e aristotélico de política visando o bem comum e coletivo, podemos pensar a democracia como sendo composta de um desejo de abranger e dar a voz à coletividade dando lugar às singularidades que compõem esse coletivo. Ainda que seja um sistema com seus furos, procura a partir das diversas formas de pensar, viver, sentir e desejar, construir diálogos e lugares possíveis para o bem público e a convivência em comum.    

LBXXI: Muros e furos: partindo do princípio de que a democracia é, por natureza, obra inacabada, de modo que esta é um objetivo a ser alcançado, quais os fatores que podem ameaçá-la e quais os elementos que a fortalecem?

Rodrigo S. de Sá Pedro:  A democracia está o tempo todo sendo ameaçada, como nos lembra a célebre frase de Bertold Brecht: “A cadela do fascismo está sempre no cio”. Importante atentarmos para a política não apenas como campo de ciência de caráter apenas ideológico e sim como atravessamento e operação psíquica, a partir de suas tantas influências no sujeito que também se relaciona com ela a partir de seus próprios sintomas, pulsões, gozos etc. Temos assim um caráter subjetivo e irracional. O fascismo por exemplo, como nos lembra Tales Ab'sáber é “uma estrutura irracional humana de desejo do poder e de submissão”, o que foi demonstrado por Freud como sendo da ordem do desejo. Assim sendo, sempre que houver condições e circunstâncias esses modos psíquicos podem ser acionados e como nos lembra o pensamento adorniano, a sobrevivência do fascismo “na” democracia é potencialmente mais ameaçadora que a sobrevivência de tendências fascistas “contra” a democracia”. Portanto, penso que o fortalecimento da democracia passa não apenas por questões educacionais formais, mas um conjunto de fatores que remetem ao que ela representa nas nossas vidas e à possibilidade de estarmos advertidos sobre como ela, ou a falta dela, nos afeta na carne, na vida.

LBXXI: A frase de Lacan, segundo a qual “o inconsciente é estruturado como linguagem”, nos leva a pensar de que forma a palavra e a linguagem costuram os campos da Psicanálise, Política e Literatura. Poderia desenvolver um pouco esta ideia?

Rodrigo S. de Sá Pedro:  Somos seres atravessados pela linguagem e constituídos a partir do Outro. Lacan afirma que “o inconsciente é estruturado como linguagem" e afirma que “o inconsciente é a política”. Ou seja, na medida em que o inconsciente é o discurso do Outro e a política está inevitavelmente articulada ao laço social, que também se orienta e se constrói no âmbito do discurso. Podemos pensar que nos tornamos políticos como nos tornamos seres falantes. Ser falante, é ser político e a palavra é o que possibilita todo esse tecido. A literatura que é uma arte da palavra e que também foi fonte de inspiração para Freud, na criação da Psicanálise, permite em sua expressão, articular todos estes campos, seja a partir da ficção expressando sobre os dramas e as tragédias humanas, seja a partir da costura possível em e a partir de suas narrativas. Temos, portanto, a linguagem e a palavra operando como símbolo fundamental de todos estes fazeres.

LBXXI: A palavra é uma ação?

Rodrigo S. de Sá Pedro: Podemos pensar a palavra como algo concreto que para além de ser uma expressão dos afetos, opera na construção de uma realidade. Se pensarmos o conceito de ação como uma força que age sobre outra coisa e/ou pessoa, a palavra pode ser entendida também como ação dependendo do contexto e de outros inúmeros fatores ali dispostos. Logicamente que não falamos aqui de discursos vazios. Mas sim da palavra viva, com corpo, carne e efeito. Da palavra que toca e afeta e faz função na nossa vida. Afinal, se somos seres atravessados pela linguagem e isto nos faz sujeitos, não é só da carne, do pão e do leite que nos alimentamos, nos alimentamos da palavra, da linguagem e agimos em função destas condições. Portanto sim, a palavra assim que falada e expressa, considero que seja uma ação.     

LBXXI: Na sua opinião, como a Psicanálise e a Literatura podem fomentar a democracia ou a cultura democrática?

Rodrigo S. de Sá Pedro: Tanto a psicanálise quanto a literatura têm como ferramenta a palavra e, portanto, o pensamento e os afetos. Assim sendo, o cerceamento desse poder de pensar por si, de trocar com outros, de ter acesso a diversos dizeres e universos simbólicos, compõe e fortalece o que é essencial do pensamento democrático. A liberdade de pensamento, como pressuposto para sermos o que somos e vivermos em sociedade, a partir do fato de que somos constituídos pelo Outro, já temos algo que não se restringe ao Um. E esta constituição se dá a partir desta possibilidade de assimilarmos o que vem do outro e constituímos nossa própria voz. Como um sistema que não fosse democrático poderia colaborar com isso? Como o autoritarismo poderia favorecer a estas expressões, à vida humana em si, cerceada por proibições e dirigida pela obediência? Ou seja, o efeito neste caso é o empobrecimento das próprias formas de pensar e viver, e a uniformização das pluralidades dos sujeitos. Por isso, tanto a psicanálise, como a literatura, penso que fomentam e podem fortalecer a cultura democrática pelas suas próprias essências enquanto fazeres.

LBXXI: O que você diria sobre os nossos desafios e responsabilidades em um mundo que evidencia o crescente aumento da intolerância e do fanatismo, notícias falsas e a existência de abordagens negacionistas da história e da identidade como ferramentas para atos políticos prejudiciais à sociedade?

Rodrigo S. de Sá Pedro: Penso que os desafios são hercúleos, pois como podemos observar na oficina, a aversão e a hostilidade àquilo que é entendido como diferente, como um “Não Eu” tende a ser repelido, negado, aniquilado. Portanto o embrutecimento do simbólico, em um mundo cada vez mais cooptado e capturado pela imagem, parece ser um mundo em crise com as possibilidades de pensar e elaborar sobre tais diferenças/diversidades e pluralidades. Penso que apontar para uma direção em face da observação e da escuta, de estar atento ao que é do humano - sem deixar de olhar para si e para o outro e longe de propor um fim mágico ao nosso mal-estar, que tem tantas e outras origens – são espaços que servem para elaborar “respostas” aos autoritarismos, aniquilamentos e fascismos cotidianos. E de uma forma mais constituída e enlaçada com o coletivo, sem deixarmos nossa singularidade de lado e sem esquecermos do caráter democrático da política, ou seja, sua própria natureza.

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