Edição 31 - Abril/2023 | Entrevista

O som da terra

Marcelo Dacosta

Qualquer tentativa de transmitir em palavras o que foi a Oficina Canção-Assentamento: terra, território e terreiro, ministrada pela atriz, cantora e escritora Juliana Amaral, será inútil. Os quatro encontros virtuais foram criados para mexer com os sentidos, aflorar os ouvidos e serem literalmente experimentados e saboreados. Um convite para sair do lugar de conforto e colocar o corpo, a voz e a emoção em movimento, tendo como pano de fundo a terra, que ora abriga e acolhe, ora expulsa e destrói. 

Juliana Amaral enxerga a terra em três eixos. O primeiro, como direito de uso (terra). O segundo, como força sagrada (terreiro), e o terceiro, um lugar de reconhecimento (território). Temas fortemente presentes na música e na literatura. “Diria que essa oficina é um interessante estudo poético ao unir a força da música com a força da palavra”, descreve.

Com ouvidos atentos e sentidos à flor da pele, os participantes mergulharam de cabeça primeiramente em solo árido para analisar os deslocamentos das pessoas pela terra e as problemáticas da colonização, que criou um projeto de país racista, misógino, intolerante e altamente preconceituoso. “Nossa colonização foi forjada pela violência. Violência contra os povos originários, contra os negros escravizados, contra as mulheres, contra os pobres, contra todas as pessoas consideradas fora dos padrões instituídos pelos colonizadores europeus”, conta Juliana.

Opressão que teve forte impacto na mobilidade dos corpos e na formação das pessoas, levando todos a incorporarem o sentimento de que a cabeça, vista como sinônimo de conhecimento, é mais importante do que o corpo. “O conhecimento é etnocêntrico. O corpo é parte da nossa visão de mundo, ele recebe o mundo e trabalha a partir de si, por isso, precisamos ler o mundo de outra maneira e sempre desconfiar de nossas certezas”, explica.

Outro mito descontruído é que a vocalidade é algo centrado na cabeça, uma vez que a sonoridade é gerada por diferentes partes do corpo, tendo sua origem no assoalho pélvico. “A voz requer a movimentação de vários grupos musculares, infelizmente a violência com que fomos organizados como sociedade fez com a gente fosse pouco a pouco parando de movimentar o nosso corpo. Hoje 95% das pessoas são cindidas”, observa Juliana. Algo extremamente controverso, já que nossa memória é essencialmente corporal, ativada por meio de sons, imagens, cheiros e toques.

Para mostrar o quanto a música tem forte relação com a voz, a palavra e o lugar de pertencimento das pessoas, Juliana mostrou ao longo da oficina várias canções, entrelaçando a temática da terra não só como lugar afetivo de estar, mas também como lugar sagrado e lugar de posse. A começar pela música Assentamento, de Chico Buarque, passando por Meu Lugar, de Arlindo Cruz, e Eminência Parda, de Emicida, até chegar a Agbá, de Douglas Germano, Lamento Sertanejo, de Gilberto Gil e Dominguinhos, e as produções musicais do grupo instrumental Uakti.

O desafio do exercício sonoro foi sensibilizar o ouvido para sons que passam despercebidos e estão escondidos no meio da melodia. Algumas canções, inclusive, possuem diferentes camadas sonoras, que só um ouvido atento, ou treinado, é capaz de identificar. “Nosso olho decupa algo que o ouvido não faz. Responsável pelas nossas sensações espaciais, o ouvido tem também a função de anular ruídos, por isso, precisamos sensibilizá-lo para essa percepção sonora”, finaliza Juliana.

Para encerrar a oficina, a cantora convidou os participantes para gravarem sons do cotidiano e a leitura de letras de músicas que tiveram uma conexão só com a terra, mas também com a vivência de cada um.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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