Edição 14 - Novembro/2021 | Entrevista

Oficina celebra obra jornalística do advogado e ativista abolicionista Luiz Gama

Silvia Costanti

Dono de uma história de vida fascinante – Luiz Gama foi ex-escravo que veio menino da Bahia e que se tornou um grande tribuno do júri na defesa gratuita de escravos - suas ações de luta pela liberdade foram legitimadas nos campos político, jornalístico e jurídico.

Seu principal legado, no entanto, são seus escritos, redigidos em primeira pessoa, em sua maioria, nos quais se observa não só o registro de sua trajetória, como a maneira como e o   sua condição excepcional no seio de uma sociedade escravocrata e de um meio letrado formado por brancos moldaram visão sobre o Brasil e o mundo.

A Oficina Inspiração Luiz Gama: escrever sobre si, o Brasil e o mundo hoje, ministrada por Ligia Fonseca Ferreira, professora associada do curso de graduação e do programa de pós-graduação em Letras da UNIFESP reforçou uma característica de Gama pouco conhecida do grande público: além de advogado que lutava contra a escravidão nos tribunais, ele foi um dos primeiros jornalistas que se dedicaram a denunciar nos jornais a violência sofrida pela população negra do país.

Em encontros que aconteceram em setembro na Biblioteca São Paulo, atividade que integra o Projeto Literatura Brasileira no XXI, em parceria com a Unifesp - as dinâmicas propostas para esta oficina tiveram como ponto de partida a leitura comentada de textos epistolares  (cartas a amigos e familiares, cartas públicas) e textos representativos do  discurso jornalístico  (artigos de opinião, crônicas, notícias), publicados nos principais órgãos da imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro ao longo de quase vinte anos.

Ao final, os alunos produziram breves textos, nos gêneros epistolar e jornalístico, uma oportunidade em que foi possível observar suas vozes e perspectivas pessoais.

Confira alguns trechos da entrevista concedida pela especialista ao Projeto Literatura Brasileira no XXI.

Luiz Gama é conhecido pela sua atuação como ativista, advogado e abolicionista. Qual o seu legado como jornalista e escritor?

Além da habilidade retórica e das agudas análises político-jurídicas, Luiz Gama revela- se um mestre da narrativa jornalística, à qual imprime seu estilo pessoal, quase sempre em primeira pessoa, colocando-se ele mesmo em cena ao lado de seus outros personagens reais, dos escravizados aos seus algozes, dos pobres desprotegidos da lei às elites imperiais. A leitura de seus escritos é de surpreendente atualidade. Ele escreveu artigos até seus últimos dias, razão pela qual, poucos depois de morrer, foi saudado como um ‘trabalhador incansável do jornalismo’. (Tal atuação o levou a ser reconhecido, em 2018, como jornalista pelo Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. Em 2020, ele também foi homenageado com o Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos).

Quais são as principais inspirações de Luiz Gama que devem iluminar as lutas atuais da sociedade brasileira?

As principais inspirações e legados estão em suas obras, para além de sua biografia e trajetória pessoal admirável. Luiz Gama tem uma extensa produção, e sua escrita foi algo de fundamental para dar voz à sua atuação profissional e política. Sua atividade jornalística era constante. Meu livro “Lições de resistência”  pretende resgatar essa dimensão, colocando luz à figura de um profissional de grande audiência em seu tempo, e busca preencher uma lacuna na história da imprensa brasileira. Luiz Gama colaborou para a fundação dos primeiros periódicos ilustrados da província de São Paulo, Diabo Coxo (1864-1865) e Cabrião (1866-1867), ao lado do artista gráfico Ângelo Agostini. Daí por diante, sua carreira nesse campo nunca mais cessaria, chegando a fundar em 1876 o semanário humorístico O Polichinelo, ilustrado por Huáscar de Vergara.

Por que o momento atual tornou-se ideal para o resgate de uma figura como Luiz Gama? Luiz Gama está sendo redescoberto pelas novas gerações?

A obra de Luiz Gama reflete o pensamento e a visão social e política sob a perspectiva singular de um homem negro de grande audiência e influência em sua época e se marca por uma surpreendente atualidade. Os temas daquele passado “que nunca passa” dialogam com os dilemas que nos afetam no plano pessoal e coletivo, nacional e internacional, além de se fazer eco aos anseios antirracistas contemporâneos.

Luiz Gama de hoje?

Nos últimos anos, uma série de publicações, produções e reconhecimentos tem resgatado seu legado. Em 2018, foi promulgada a Lei nº 13.629, que declarou Luiz Gama como o patrono da abolição da escravidão do Brasil. Também, na mesma data, foi publicada a Lei nº 13.628, que o inscreveu no Livro dos Heróis da Pátria. Em 2015, Luis Gama recebeu da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), 133 anos após a sua morte, o título de advogado e, neste ano, a USP concedeu o título de doutor honoris causa póstumo a Luiz Gama. Agora, 139 anos depois de sua morte, o advogado, escritor, jornalista, intelectual, figura política influente e abolicionista ganha cada vez mais evidência e revalorização por meio de pesquisas acadêmicas, livros, obras artísticas, homenagens e até um filme biográfico “Doutor Gama”, com direção de Jeferson De, roteiro Luiz Antônio e elenco: Cesar Mello, Pedro Guilherme e Angelo Fernandes, no qual eu participei como consultora.


Obra busca preencher uma lacuna na história da imprensa brasileira. Organização: Ligia Fonseca Ferreira (Edições Sesc São Paulo 2020).

Um aspecto valioso, mas pouco conhecido, do legado de Luiz Gama está na coletânea Lições de Resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro, das Edições Sesc, organizada por Ligia Fonseca Ferreira, especialista na obra do autor.

Com prefácio do historiador Luiz Felipe de Alencastro, o livro traz introdução e notas elaboradas pela pesquisadora, elementos fundamentais para a compreensão dos 61 artigos de reconhecida autoria de Luiz Gama, sendo 42 deles inéditos, publicados em importantes órgãos da imprensa paulista e carioca entre 1864 e 1882. O livro dá continuidade a outra obra da professora: em 2011 organizou Com a Palavra, Luiz Gama — Poemas, artigos, cartas, máximas, que reúne vários textos e ilustrações inéditas.

Sobre Ligia Fonseca Ferreira

Docente de graduação e pós-graduação em Letras da UNIFESP – Universidade Federal de São Paulo. Bacharel em Letras e Linguística pela USP. Possui doutorado pela Universidade de Paris 3 sobre vida e obra de Luiz Gama, e pós-doutorado no Instituto de Estudos Brasileiros da USP, com pesquisas no campo da epistolografia brasileira e franco-brasileira.

Em 2000, organizou a edição da obra poética integral de Luiz Gama em Primeiras Trovas Burlescas e outros poemas (Martins Fontes, 2000). Reuniu pela primeira vez textos, em sua maioria inéditos, em  Com a palavra Luiz Gama. Poemas, artigos, cartas, máximas (Imprensa Oficial, 2011, 2018, 2019). Acaba de lançar  Lições de resistência. Artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro, de 1864 a 1882 (Edições do SESC, 2020).

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