Edição 29 - Fevereiro/2023 | Entrevista

Um mergulho no mundo das distopias literárias

Marcos Santos

O que escritores como Aldoux Huxley, George Orwell, Margaret Atwood e Ievguêni Zamiátin têm em comum? Todos produziram obras classificadas como distopias literárias, ou seja, de forma bem simplista, livros que abordam um mundo infeliz e ficcional, porém com ingredientes inspirados na vida real. Na prática, o assunto é bem mais complexo e por isso foi tema da oficina Distopias Literárias e a Política no Brasil, realizada na Biblioteca Parque Villa-Lobos, de 7 a 16 de dezembro, pelo professor de Cultura e Literatura Brasileira da USP, Jean Pierre Chauvin.

Antes de entrar no aspecto literário, convém compreender alguns conceitos que permeiam o assunto. Em primeiro lugar, a gênese da palavra utopia, definida como um desejo imaginário de tornar o mundo um lugar melhor. A palavra surgiu primeiramente no livro Utopia, de Thomas More, de 1516, no qual o autor relata uma excursão a uma ilha imaginária chamada Utopia, uma referência ao trocadilho com a palavra em latim topos: ou-topos (em nenhum lugar), eu-topos (um bom lugar) e u-topos (terra em U), relacionado ao formato do local onde se passava a história.

Já para conceituar o termo distopia, Jean Pierre utiliza o trabalho dos autores Gregori Clayes e Adam Roberts, importantes historiadores de ficção científica. Segundo eles, a palavra passou a ser utilizada no século 18 e assumiu significados diferentes ao longo do tempo. “Inicialmente era usada como uma contraposição às utopias, ou seja, uma terra infeliz. Na década de 1950, passou a ser considerada o oposto de sociedade ideal, e a partir dos anos 1960, é vista como antiutopia, definida como qualquer narrativa que tenha como objetivo descrever uma sociedade infeliz e com muitos obstáculos”, analisa Chauvin. Apesar de alguns estudiosos considerarem as distopias como um gênero literário, o professor explica que para evitar confusões uma alternativa é classificá-las como obras que abordam temas distópicos.

A presença do cenário ficcional é apenas um aspecto de semelhança entre as obras. Outras características marcantes são a dramatização de uma sociedade infeliz, contada por um narrador em primeira ou terceira pessoa, e o uso de poucos personagens. “A ideia do conto distópico não é discutir a personalidade dos personagens, mas sim mostrar que são pessoas limitadas, que enfrentam vários obstáculos para viver, algumas vezes explícitos, outras implícitos”, descreve o professor.

Além da recorrente falta de dinheiro, os personagens pregam a apologia ao trabalho e possuem como momentos de lazer distrações viciantes, como álcool, drogas e cigarro. Há também o uso recorrente de alguns temas, como a ambientação em regimes totalitários, com diversas barreiras sociais, estado de guerra, mecanismos de manipulação, isolamento, limites físicos, dificuldade de comunicação, degradação dos espaços, dispositivos de controle, batalha entre homem e máquina, entre outros.

Nas obras, quando os personagens percebem que vivem em um mundo restritivo, naturalizam o estilo de vida de forma bem pragmática, aceitando que não há espaço para a criatividade, que atitudes espontâneas são punidas e a inexistência de arte autoral, apenas as encomendadas por partidos ou pelo estado. “Em paralelo a essa realidade, é a constatação de que alguns cenários presentes nas distopias acontecem no mundo fora do livro. Na vida real nós temos concentração de renda, desigualdade social e retorno de regimes totalitários em determinados países”, observa.

Jean Pierre ainda destacou o papel das mulheres dentro das distopias. Mesmo não ocupando o papel de protagonistas nas histórias, elas são responsáveis por reverter o rumo da narrativa e funcionam como uma alternativa ao pensamento binário dos homens.

Outro ponto a ser observado é o momento histórico em que as obras distópicas foram produzidas. “As distopias não nascem do além, elas estão sempre ligadas a um contexto histórico, social e cultural em que as sociedades estão atravessando. As datas de publicação das distopias costumam coincidir com períodos de instabilidade da humanidade”, comenta o professor. Como exemplo, a trilogia clássica das distopias, como o livro Nós, do russo
Ievguêni Zamiátin, que foi escrito em 1924, período entre guerras e sob o domínio totalitário de Stálin. “Para ter o livro publicado, o autor pediu autorização para sair do país e levou manuscrito, posteriormente publicado em inglês nos Estados Unidos”. Há ainda Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, concebido no ano da Criação do Partido Nazista, e 1984, de George Orwell, lançado em 1949, no período pós-guerra.

Finalizando o encontro, Jean Pierre apresentou os sete principais ingredientes que compõem a estrutura de um romance ou conto distópico. São eles:

1.     Contrapontos no cenário/ambiente: grandes edifícios x células de trabalho, vias largas x corredores estreitos, estruturas burocráticas imponentes x moradias humildes, laboratórios futuristas, entre outros;

2.     Narrador em primeira pessoa mais presente aos eventos que conta; narrador em terceira pessoa distanciado em relação aos fatos e personagens;

3.     Duas versões de personagens: as planas, mais caricatas e previsíveis; e as esféricas, mas complexas e imprevisíveis;

4.     Equilíbrio entre reflexão e ação (desenvolvidas em um tempo-espaço determinado);

5.     Zelo pela verossimilhança;

6.     Acontecimento de peripécias (plot twist);

7.     Descrição de procedimentos hiperprecisos.

 

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