Ateliê Literário | Edição 40 - Janeiro/2024

"A garota da fila" e "Massinha"

Ilustração: Fernando Siniscalchi

Cristiane Amorim

Confira os textos produzidos pela participante Cristiane Amorim, a partir da oficina “O que pesa na prosa", ministrada pelo escritor Tiago Germano, na Biblioteca de São Paulo, em novembro de 2023.


A garota da fila


            Era feminista, de certo que era. Não dessas que rasgam sutiã ou tem aversão aos homens. Gostava bem de uma barba malfeita no cangote. Na realidade, o que prezava com extremo rigor, era pela premissa de ser dona do próprio nariz.

            Essa aí, a do parágrafo acima, estava na fila do mercadinho de cereais, desses que vendem grãos e a galera vegana adora. Atrás dela se prostrou uma garota. Corpinho de academia, papo já começado em outra história com uma senhora que a acompanhava. Pareciam íntimas, embora fosse evidente não serem mãe e filha ou colegas de trabalho. Ainda que distraída com amêndoas defumadas e pastas de amendoins, nossa protagonista foi capturada logo na primeira frase da conversa alheia:

            – Droga! Não vou conseguir levar tudo que queria. O Márcio tá controlando feio a grana.

            – Como assim Luiza?

            – Ah, deu para conferir o extrato do cartão. E outro dia disse na minha cara que não me admira. Toda semana tem uma briga.

            A senhora faz algum comentário apaziguador, enquanto ela pensa que a menina, que agora já se sabia Luiza, deveria sair logo daquela relação abusiva. Homens dominadores tendiam a diminuir moralmente as parceiras para que pudessem controlá-las mais facilmente.

            – Ele disse que não me admira porque eu não trabalho. E ele tem que bancar sozinho as despesas. Tá ameaçando até cortar os gastos e mandar a Lurdinha embora.

            – Ah, isso não dá! Você não casou com ele para virar empregada agora, né?

            Algum problema no caixa fez com que fila ficasse um pouco mais apertada. As três espremidas no corredor de temperos. Ela por pouco não apimenta ainda mais a discórdia entre Luiza e o marido. Já estava preste a sugerir que a garota fizesse um perfil no linkedin. Era imperativo que ela mostrasse para o babaca que podia se virar sozinha. Onde já se viu? Falar na cara da esposa que não a admira!      Construiu em segundos um diálogo inteiro na cabeça, todas as frases que o miserável deveria ouvir, dedo na cara e tudo. Mas Luiza se antecipou:

            – Aí, eu tomei uma atitude. Me inscrevi num curso de instrumentação cirúrgica.

            Um alívio enorme tomou conta dela. Prestes a se virar para dar os parabéns pela atitude, foi interrompida pela senhora:

            – Onde é o curso?

            Pergunta desnecessária e que interrompia o fluxo da narrativa, mas infelizmente não tinha como controlar a fala dos que não eram seus personagens.

            – No Senac, quem sabe eu não arranjo um cirurgião cardíaco.

            A frase chega aos seus ouvidos de forma enviesada. As sobrancelhas se levantam, ainda que ligeiramente arqueadas ao centro, enquanto a garota continua com suas considerações.

            – Porque sozinha eu não quero ficar. Solteira eu não fico de jeito nenhum! Se arranjar um cirurgião, aí eu deixo ele e o curso também, é claro. Não tenho a menor paciência para ficar estudando.

            A esta altura se sentiu obrigada a compactuar com o marido da tal: realmente, ela não era digna de admiração. Que porra de mulher é essa que não sabe viver sem a companhia de um homem? Que ainda precisa ser sustentada! Que acomodada e servil se submete a este tipo de humilhação?

            – Por um cirurgião, troco ele na hora!

            Se recusou a ouvir o resto da conversa. Já tinha pago pelas compras, saiu sem olhar para atrás. Não iria perder seu tempo pensando na cena. Aliás, o que não aguentava mais era pensar. Pensar é o que a tornava diferente daquela menina. Pensar às vezes era arriscado, sem falar que dava um trabalho danado. Será que certa estava a garota que ficava em casa de pernas para o ar, sustentada por um outro qualquer? Isso nunca iria descobrir!

 

           Massinha

            Brincávamos de massinha inventando formas, personagens, caminhos para aquela manhã chuvosa. Ele, com seus poucos anos, volta e meia largava o brinquedo e se punha a correr pelo quarto, a virar cambalhotas ou pular na cama. Tento capturá-lo:

            – Filho olha essa flor que eu fiz.

            Ele se senta ao meu lado, leva a flor ao nariz e sentencia:

            – Mãe sua flor tem cheiro de alegria.