Ateliê Literário | Edição 42 - Março/2024

A palavra que arranha o ar do ser/tão

Ilustração: Fernando Siniscalchi

Solange Damião

Um sertão traduzido em palavras. Confira o texto da participante Solange Damião, que emerge da oficina “O sertão múltiplo”, ministrada pelos professores Susana Souto, da Universidade Federal de Alagoas, e Joel Vieira, indígena Katokinn, professor e escritor, na Biblioteca de São Paulo, em janeiro de 2024.

Boa leitura!


Silêncio a palavra: uma encosta quando o orvalho desce

e encontra a face do sorriso

grafado. Os dedos que o grafam nesse instante,

submergem no seu hálito,

até que a palavra transcenda em frase

e paire, pelo ar, no palato

como se escorresse numa atadura de seiva

entre

o miocárdio e a medula.

Não sei se a palavra arranha o ar ou se o ar

arranha a palavra na escuridão.

O céu abraça a noite com um silêncio encantado.

Faço cálculo, música, poesia,

uma geografia

marítima do ser/tão. E nessa desordem

assombrosa, por vezes uma bússola de regozijo,

estimula

subitamente o tempo,

quando minhas mãos tateiam as estações, precipitando-se entranhadas

na seiva substancial da língua

numa oração

em que a palavra no ar se torna um prolongamento do chão.

Sorvo então a substância apresentada ao céu:

olho-a intimamente

e aspiro-a selenicamente

com a sua taquicardia

lunática.

Bebo e fico inteira: um vaso

secreto para consumo.

E tudo se alumbra do alto de uma água inerte

que me disseca no delírio

da obra e penso:

– O que se bebe do vaso que o barro

exalta, molha de palavra

o sorriso.