Ateliê Literário | Edição 42 - Março/2024
A palavra que arranha o ar do ser/tão
Solange Damião
Um sertão traduzido em palavras. Confira o texto da participante Solange Damião, que emerge da oficina “O sertão múltiplo”, ministrada pelos professores Susana Souto, da Universidade Federal de Alagoas, e Joel Vieira, indígena Katokinn, professor e escritor, na Biblioteca de São Paulo, em janeiro de 2024.
Boa leitura!
Silêncio
a palavra: uma encosta quando o orvalho desce
e
encontra a face do sorriso
grafado.
Os dedos que o grafam nesse instante,
submergem
no seu hálito,
até
que a palavra transcenda em frase
e
paire, pelo ar, no palato
como
se escorresse numa atadura de seiva
entre
o
miocárdio e a medula.
Não
sei se a palavra arranha o ar ou se o ar
arranha
a palavra na escuridão.
O céu
abraça a noite com um silêncio encantado.
Faço
cálculo, música, poesia,
uma
geografia
marítima
do ser/tão. E nessa desordem
assombrosa,
por vezes uma bússola de regozijo,
estimula
subitamente
o tempo,
quando
minhas mãos tateiam as estações, precipitando-se entranhadas
na
seiva substancial da língua
numa
oração
em
que a palavra no ar se torna um prolongamento do chão.
Sorvo
então a substância apresentada ao céu:
olho-a
intimamente
e
aspiro-a selenicamente
com a
sua taquicardia
lunática.
Bebo
e fico inteira: um vaso
secreto
para consumo.
E
tudo se alumbra do alto de uma água inerte
que
me disseca no delírio
da
obra e penso:
– O
que se bebe do vaso que o barro
exalta,
molha de palavra
o
sorriso.