Ateliê Literário | Edição 39 - Dezembro/2023
Carta a Pero Vaz de Caminha; Pindorama Distópica; Eu Sou; Legados para o Amanhã
Alessandra Karla Leite
Reverberando potentes vozes
ancestrais da contemporaneidade, como Daniel Munduruku, Eliane Potiguara, Graça
Graúna, Márcia Wayna Kambeba e Ailton Krenak, a oficina “Perspectivas Pindorâmicas: literaturas
Indígenas (sempre) contemporâneas”,
ministrada em novembro pela escritora, professora e pesquisadora Fernanda Vieira
na Biblioteca Parque Villa-Lobos, partiu da leitura e da escuta ativas e do diálogo com textos
literários para a construção de entendimentos sobre as literaturas dos Povos
Originários do Brasil/Pindorama. Daí, surgem as novas perspectivas da
participante Alessandra Karla Leite.
Boa leitura!
Carta a Pero Vaz de Caminha
A feição deles é serem pálidos, um
tanto amarelados, os rostos são maus e têm uma coisa esquisita, feito nuvem em
pé, colada na metade da cara. Estão cheios de roupas cobrindo as pernas, os
braços. Tem um que usa vestido preto. São esquisitos. Estão em muitos barcos.
São assustadores e querem a nossa terra toda só para eles.
Chegaram aqui vindos não sei de
onde, para nos vestir com suas mercadorias. Roubar nossas vidas. Apagar nossas
Línguas.
São nus de alma e querem nos
transformar em coisas.
Não entendo o que dizem. Não quero
entender.
O antropoceno é aquele homem branco,
com algodão queimado cobrindo-lhe a face violenta.
Pindorama Distópica
Minha terra esconde o céu
Sob o véu de luzes falsas
Aves gorjeiam solitárias
O canto diáfano da manhã
Ofuscado por ruídos
opacos
Ecoando juntos por entre torres de concreto
céu está embaixo
As estrelas se esconderam
Nossos rios não têm mais
vida
Nossos bosques sucumbiram
Pindorama sem amor
No rio que voa
Navegando a impávida
floresta
Moléculas espalham vida
Por entre os fios
luminosos dos sonhos
Do lado de cá
Sob a sombra da
árvore-mãe
Sigo voando entre nuvens
e estrelas
Minha terra chora as
dores
Que tristeza encontro lá
Sugaram os mares,
gastaram tudo
Minha terra chora os rios
Onde água já não há
Não permita Tupã que eu
seja encantado
Sem ver a mágica chegar
Meus parentes cantando e
dançando
Numa roda de sonhar
Pindorama sem os muros
Que só fazem nos matar
Não permita que eu me vá
Sem avistar as estrelas
De dentro dos igapós
Remar em constelações
Ema, Homem Velho, Anta do
Norte, Veado
Avisto a nova era
Onde os homens vão viver
Constelar
Gorjear em tupi, sateré,
nheengatu, kaiowá
Caraxué, Coca, Laranja,
Barriga-Vermelha, Ponga, Piranga
Ecoar livres os cantos diversos de todos os sabiás
Eu Sou
Eu sou o cheiro de
tambaqui assado na beira do rio
Eu sou o cheiro da
criança que eu mais amo
Eu sou o pitiú do peixe
impregnado nas mãos
Eu sou o tempero salgado
da farofa de Natal
Eu sou o suco do caju
apanhado do pé no quintal da infância
Eu sou o abraço quente e
macio da minha mãe
Sou o abraço demorado da
minha criança quando volto de viagem
Sou o abraço de bom dia
do José quando estou em casa
Sou a força desses
abraços. Sou o restauro que eles me dão.
Eu sou o abraço e o colo
do meu pai
Eu sou o verde da
floresta
Eu sou a água amarela no
raso do rio Maués-Açu
Eu sou os meus livros
Sou Van Gogh, Murakami,
Virginia Woolf
Sou caderno, papéis e
canetas
Sou as músicas do meu pai
Sou a gargalhada da minha
mãe
Eu sou as brincadeiras de
comidinha no quintal
Eu sou os meus cajueiros
Eu sou o cheiro do abraço
da minha vó
Sou o som da risada dela
Sou a dancinha engraçada
do meu avô
Sou a Merê ronronando
macia no meu pé
Sou a palavra do anjo
mais velho a me orientar
Eu sou minha cabeça
deitada no peito do meu amor
Sou nossas mãos
entrelaçadas
Eu sou as bolhas de
sabão, as estrelas, o brilho dos olhos e o coração do nosso José
É onde estou salva
É onde sempre estou segura
Legados para o Amanhã
Canto para ti
Que me lê do futuro
Peixes dourados alimentam
o novo homem
Forjado nas escamas
porosas do tempo
Sob o teto infinito
Move-se dançante em minha
rede um corpo celeste
Devolvo ao rio seu
cardume de estrelas
Para que um dia tu vivas
Na borda cintilante do
sonho
O fim que hoje eu não
deixei chegar