Ateliê Literário | Edição 42 - Março/2024

Caru

Ilustração: Fernando Siniscalchi

Carmem Silvia Feliz Venturini

Personagens caminham pelo sertão de Carmem Silvia Feliz Venturini, participante da oficina “O sertão múltiplo”, ministrada pelos professores Susana Souto, da Universidade Federal de Alagoas, e Joel Vieira, indígena Katokinn, professor e escritor, na Biblioteca de São Paulo, em janeiro de 2024.

Boa leitura!


Amorrinhadinha. Ela chegou mansinho. Olhar desconfiado. Um bicho do mato assustado. Desmemória. Destempo. Que há de real? Vinte e cinco anos. Dela sempre lembrei que tinha esse ar de bicho assustado, com um medo de não se  sabe bem do que ou de quem, sempre meio arisca e desconfiada. De início não soube como reagir a sua presença, nem ela a minha. Eu não acreditava que era ela. Também ela, não cria que era eu. Sentou-se e, silenciosamente, me olhava, sem reação. Eu igual.

Olhos profundos, arregalados, parados, perdidos. Cabelo amarrado, bem esticado para trás, com uma grande mecha branca sobressaltada, saindo-se à direita. Como me lembro, ela nunca reagia. Vivia pra dentro de si. Sua voz tão fraca, distante e como em um último esforço disse: É você? Você veio? Pois nem acredito! Alguns segundos eternos se passaram para que me inteirasse de sua desexistência real. Lembro-me de que alguém disse, como tentando me ajudar: Você não conhece mais? Talvez eu realmente não a reconhecesse.

Como quase tudo. O tempo. O que seguiu foi um abraço tomado de uma angústia terrível. Receio. Seu corpo parecia que se desfaria entre meus braços  se a apertasse um pouco mais. Osso coberto de pele. Dedos longos cobertos de pele. Pele curtida. As marcas de um sertão inteiro em um único corpo: frágil, óssil, seco, débil, duro, esquecido. Desexistido.