Ateliê Literário | Edição 42 - Março/2024
Caru
![](../galeria/crop.php?arquivo=atelieliterario-1024-atelie-6-.png&largura=1280&altura=720)
Carmem Silvia Feliz Venturini
Personagens caminham pelo sertão de Carmem Silvia Feliz Venturini, participante da oficina “O sertão
múltiplo”, ministrada pelos professores Susana Souto, da Universidade
Federal de Alagoas, e Joel Vieira, indígena Katokinn, professor e escritor,
na Biblioteca de São Paulo, em janeiro de 2024.
Boa leitura!
Amorrinhadinha. Ela
chegou mansinho. Olhar desconfiado. Um bicho do mato assustado. Desmemória. Destempo. Que há de real? Vinte e cinco anos. Dela sempre lembrei
que tinha esse ar de bicho
assustado, com um medo de não
se sabe
bem do que ou de quem, sempre meio arisca e desconfiada. De início não soube como reagir a sua presença, nem
ela a minha. Eu não acreditava que
era ela. Também ela, não cria que era eu. Sentou-se e, silenciosamente, me olhava, sem reação. Eu igual.
Olhos profundos,
arregalados, parados, perdidos. Cabelo amarrado, bem esticado para trás, com uma grande mecha branca sobressaltada,
saindo-se à direita. Como me lembro,
ela nunca reagia. Vivia pra dentro de si. Sua voz tão fraca, distante e como em um último esforço disse: É você? Você veio? Pois nem acredito!
Alguns segundos eternos
se passaram para que me inteirasse de sua desexistência real. Lembro-me de que alguém disse, como tentando
me ajudar: Você não conhece mais? Talvez eu realmente não a reconhecesse.
Como quase tudo. O tempo. O que seguiu foi um abraço tomado
de uma angústia terrível.
Receio. Seu corpo parecia que se desfaria
entre meus braços se a apertasse um pouco mais. Osso
coberto de pele. Dedos longos cobertos de
pele. Pele curtida. As marcas de um
sertão inteiro em um único corpo: frágil,
óssil, seco, débil, duro, esquecido. Desexistido.