Ateliê Literário | Edição 44 - Maio/2024
Chega de invisibilidade: um diálogo entre mulheres negras
Adelina Marias Martins
Quarto de Despejo e a autora Carolina Maria de Jesus
são o ponto de partida de Adelina Marias
Martins para construir seu texto, inspirado na oficina
“O povo brasileiro na literatura, construindo identidades”, ministrada pela
professora e pesquisadora Lilian do
Rocio Borba, na Biblioteca de São Paulo em março de 2024.
Boa leitura!
Eu escolhi o livro Quarto
de Despejo e a autora Carolina Maria de Jesus por me identificar com o
texto e com suas histórias de mulher negra, mãe solo negra e pobre. Desperta
minha atenção também sua coragem de falar a verdade em um período de ditadura,
além de a obra ser a história real de uma mulher que morou na favela e que
poderia ser a vida de qualquer pessoa que vive ali. Carolina gosta de ler e de
escrever, quer ser escritora. Fala da realidade e do território da favela do
Canindé e do seu tempo histórico. Fala da política e dos políticos da época e
do preconceito e do racismo que sofre por ser negra e pobre. Aborda as
diferenças do centro da cidade e da periferia. E é orgulhosa de ser mulher
negra, que não sofre violência doméstica, que não tem vergonha da sua cor, nem
de seu cabelo.
Carolina Maria de Jesus
foi uma escritora improvável, tanto que as pessoas achavam que não era ela que
escrevia, mas sim o jornalista, Audálio Dantas. Carolina é escritora,
pensadora, política e feminista. Seu diário e sua escrita seguem muito atuais em
nosso dia a dia, em 2024.
Li este livro por um
acaso, porque gosto muito de ler. Vi seu livro em um sebo, achei muito
interessante, comprei e acabei lendo, mas nunca havia ouvido falar da autora.
Por muito tempo, ela ficou invisível. Só agora nos últimos anos, que
descobriram a escritora. Ela, como qualquer outra autora negra, sofreu a
invisibilidade: o racismo literário. E, ao fazer esta reflexão, voltei a lê-la
e pesquisar sobre sua trajetória, pois tenho um projeto que se chama: “Sarau
afro debaixo d’árvore: a poesia como instrumento de uma educação antirracista”.
Carolina Maria de Jesus, além disso, faz parte de minha pesquisa como escritora
negra.
Na época em que li seus
textos, nos anos 70, não tinha noção do valor de seus escritos, mas me lembro
de que gostei muito. A fome, a falta de moradia, as violências domésticas, está
tudo no seu diário. O cenário de pobreza que continua e acontece hoje. O fato
de ela ter escrito entre os anos 1955 e 1960 não torna o texto “velho”. Nada
mudou, os assuntos tratados continuam muito atuais.
No início, a autora fala
de seu trabalho, que trabalha muito e nunca tem nada. O que ganha mal dá pra
comer. Fala sobre a desvalorização do trabalho, e dos materiais recicláveis que
é muito importante, mas que não tem nenhum valor. Como cita no trecho abaixo:
Eu pretendia comprar um par
de sapatos. Mas os gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos de
desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos
no lixo lavei e remendei para ela calçar. (p. 9)
(...) o que eu aviso aos
pretendentes da política é que o povo não tolera a fome. É preciso conhecer a
fome para descrevê-la. (p. 25)
E assim no dia 13 de Maio de
1958 eu lutava contra a escravatura atual a fome. (p. 27)
Nestes últimos tempos
também estamos vivendo a falta de comida, a fome. Não era só ela que nunca
tinha nada, na época da publicação, essa situação era geral, muitos
trabalhadores sem qualificação. Carolina até gostava do que fazia, apesar de
seu trabalho ser desvalorizado, mas não gostava do lugar onde morava que chama
de “inferno”. Hoje vivemos a desvalorização do trabalho, a retirada de direitos
antes conquistados.
Carolina trabalhava muito
e nunca tinha nada, mal dava para sobreviver. Os jovens não tinham uma
perspectiva de vida, de mudança, porque na época, pobres e negros, não tinham
acesso à escola, à educação, nem à universidade. Também não tínhamos políticas
para a saúde pública. Ainda hoje, quem mora na periferia está longe do
trabalho, não tem acesso a um transporte de qualidade, a bens públicos de lazer
e de cultura.
Carolina é feminista
também, porque fala que não precisa de um homem para ser feliz. Os
relacionamentos sobre os quais ela comenta são sem vínculo mais profundo. Ela
diz que não quer aturar um homem que mande nela, pois gosta de sua liberdade,
de poder fazer o que quer, de poder escrever a hora em que quer. Ela cita:
Os meus filhos não são
sustentados com pão de igreja. Eu enfrento qualquer espécie de trabalho para
mantê-los. E elas, tem que mendigar e ainda apanhar. Parece tambor. À noite
enquanto elas pede socorro eu tranquilamente no meu barracão ouço valsas vienenses.
Enquanto os esposos quebram as tabuas do barracão eu e meus filhos dormimos
sossegados. Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas
indianas. (p. 14)
Outro assunto presente no
diário da Carolina são as brigas das crianças, as reclamações sobre seus
filhos. Eu vejo, nesse tema, as mães-solo pobres que saem para o trabalho e
seus filhos ficam sozinhos. Isso acontece com muitas mães do Brasil, inclusive
aconteceu comigo, que não tinha onde deixar meus filhos para trabalhar. Naquele
período, não havia creches para as crianças pequenas frequentarem, como ela
cita neste trecho.
Tenho que levar minha filha
Vera Eunice de dois ano, e não gosta de ficar em casa. Eu ponho o saco na
cabeça e levo-a nos braços. Suporto o peso. Tem hora que revolto-me. Depois
domino-me. Ela não tem culpa de estar no mundo. (pp. 19-20)
Ela se revolta com a
situação de ter que levar a filha para o trabalho, mas como deixar uma criança
de dois anos sozinha em casa? É uma vida difícil. Seus filhos frequentam a
escola, porém quando voltam das aulas ficam em casa sozinhos. Até hoje também
não temos creches para todas as crianças.
E hoje temos escola,
porém as crianças saem da escola (muitas vezes uma escola precária, onde pouco
se aprende) e passam a metade do dia sem ter o que fazer. Ficam na rua à mercê
de serem cooptadas por traficantes, ou aprendendo coisas que não devem, e
quando chegam em casa, muitas vezes, não têm o que comer. Enquanto os filhos de
ricos têm babás e mães para orientar, podem fazer uma natação, judôs, curso de
inglês. Essa é a diferença: enquanto o rico e branco vai se preparar para o
futuro, o pobre está na rua vivendo com más companhias, porque as mães estão
trabalhando como empregadas domesticas cuidando dos filhos dos outros, até de
seus cachorros, enquanto seus filhos estão abandonados, sem um lugar para ficar
e estudar.
Suas preocupações
continuam muito atuais depois de tanto tempo, pouco tem mudado. A autora cita
os políticos que só vão atrás das pessoas nas épocas das eleições, algo que
continua acontecendo. Precisamos mudar essa realidade, com relação aos
políticos porque eles teriam que voltar nos bairros para poder tentar mudar a
realidade das pessoas que votaram, trazendo melhoria e investimento aos bairros.
Para que venha mais investimento para as periferias, mais investimentos em
educação, cultura e lazer e trabalho. Hoje, vemos que a maiorias dos
investimentos vão para os bairros de pessoas ricas, das elites.
É muito importante que as
escolas disponibilizem e apresentem autores negros e autoras negras para os
alunos e alunas. Porque até hoje os livros desses autores praticamente não
fazem parte dos currículos nas escolas. Em minha pesquisa nas escolas que
visitei, descobri que até mesmo nas bibliotecas não tem no acervo livros de
autores negros. E, muitas vezes, também nem para comprar tem. Não tem nas
editoras. Eu acho é que isso é o racismo estrutural na literatura, que torna o
escritor invisível, autores negros invisibilizados.
Referência bibliográfica:
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de
Despejo: Diário de uma favelada. São Paulo: Editora Ática. 8ª edição. 2001.