Ateliê Literário | Edição 49 - Outubro/2024

Entre a dor e o amor: reflexões sobre a poesia de Aldisio Filgueiras

Ilustração: Fernando Siniscalchi

Sônia Regina Silva

* Texto produzido a partir da oficina “Amazônias poéticas: culturas, heterogeneidades, hibridismos”, ministrada pelo professor, pesquisador e escritor Fadul Moura, na Biblioteca Parque Villa-Lobos, em agosto de 2024. 

Estado de Sítio é um marco na literatura brasileira, especialmente por sua abordagem corajosa e crítica do Regime Militar, que dominava o país na época de sua primeira publicação, originalmente em 1968, e reeditado em 2004. Isso traz à tona a relevância contínua de temas sociais e políticos discutidos, que são pertinentes nos dias de hoje. O autor, Aldisio Filgueiras, nasceu em Manaus em 1947. Ele é poeta, compositor e jornalista, iniciou sua produção poética ainda no curso secundário, no Colégio Estadual D. Pedro II, participando do Grêmio Literário Mário de Andrade. Sua estreia literária ocorreu em 1968, com o referido livro de poemas Estado de Sítio, proibido pela censura. Filgueiras é membro da Academia Amazonense de Letras e sua obra inclui outros livros, como Malária e outras canções malignas (1976), A República muda (1989) e A dança dos fantasmas (2001).

Estado de Sítio aborda temas como a repressão política, a censura e as dificuldades sociais enfrentadas durante o regime militar no Brasil. A obra é marcada por uma linguagem crítica e reflexiva sobre a realidade amazônica e brasileira, com poesias que refletem as dificuldades e injustiças enfrentadas pelo povo brasileiro, especialmente na região amazônica. Para entender melhor a conexão entre o livro e o contexto histórico, é importante considerar um poema que aborda diretamente a temática política. Por exemplo, o poema Carta para a moça que viu o século XX fala sobre a repressão e a censura durante a ditadura militar:

era preciso que andasses

na rua, como na selva

anda o bicho pequeno

...

Não sabias do revólver

norte-americano

(fabricado no Brasil)

no ouvido do mundo

 

nem da ciranda

cirandinha dos bruxos

em seus gabinetes

 

foste muito indefesa

ao encontro

do cimento armado

 

mísseis não são pombos

azuis com notícias de amor

...

Esses versos evocam a sensação de vulnerabilidade e medo que muitas pessoas sentiram durante o Regime Militar no Brasil. A menção ao revólver norte-americano (fabricado no Brasil) e aos mísseis destaca a presença de armas e a ameaça constante de violência. Além disso, a referência à ciranda dos bruxos em seus gabinetes sugere a manipulação e o controle exercidos pelos líderes políticos da época.

            Ao fornecer um pano de fundo histórico, o texto ajuda entender a crítica social presente na obra do autor. Essa também pode ser vista na atenção dedicada à mulher. Isso acontece quando Filgueiras utiliza sua poesia para denunciar as injustiças sociais de sua época. Esse é o caso do texto De uma doméstica, que expõe a invisibilidade e as dificuldades enfrentadas pelas empregadas domésticas. Ele destaca a dor e a falta de reconhecimento dessas trabalhadoras, tanto em suas vidas profissionais quanto pessoais, expressos nitidamente em seus versos: 

difícil é precisar

a dor

de uma entrada de serviço

quanto mais o amor

de um quarto

de empregada.

 

            O poema utiliza uma linguagem simples e direta para expressar a complexidade das emoções e experiências das empregadas domésticas. Os versos entrada de serviço e quarto de empregada são metáforas poderosas que simbolizam a segregação e a marginalização dessas trabalhadoras. A dor mencionada no poema não é apenas física, mas também emocional, refletindo a falta de reconhecimento e valorização. O uso desses versos curtos e a ausência de pontuação reforçam a sensação de sufocamento e invisibilidade dessa classe social subjugada. O quarto da empregada é um cubículo do serviçal, em oposição ao quarto luxuoso do patrão, enquanto a entrada de serviço contrasta com a entrada social, permitida para uma elite minoritária em detrimento da classe subalterna.

            O poema De uma doméstica é uma profunda reflexão sobre a condição de silenciamento social das empregadas domésticas, destacando a dor e a invisibilidade que permeiam suas vidas. Através de uma linguagem simples, mas carregada de significado, o poeta nos convida a refletir sobre as injustiças sociais e a necessidade de reconhecimento e valorização dessas trabalhadoras. Pode-se dizer que é um alerta à empatia e à ação, incentivando todos a reconhecerem e valorizarem o trabalho dessas mulheres, que desempenham um papel crucial na sociedade, mas muitas vezes são esquecidas e desvalorizadas.

Referências

FILGUEIRAS, Aldisio. Estado de sítio. 2.ed. Manaus: Editora Uirapuru, 2004.