Ateliê Literário | Edição 43 - Abril/2024
"Insuficiente" e "Trabalho de Gente"
Nívea Lopes
Nívea Lopes, participante da oficina “A Literatura do Brasil pelo Norte”, registra suas impressões nos dois textos abaixo. A atividade foi ministrada por Yurgel Pantoja Caldas, professor e pesquisador da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), na Biblioteca Parque Villa-Lobos, em fevereiro.
Boa leitura!
Insuficiente
Há coisas do cotidiano que podem ser reveladoras: umas pelo ineditismo – as mais fáceis – e outras pela constância com que ocorrem, essas mais difíceis de perceber justamente porque estão na ordem do comum. Mas existem experiências que estão entre a raridade e o previsível. Foi assim numa entrevista de emprego quando a moça que fazia o recrutamento para uma vaga numa agência de publicidade me perguntou sobre a minha cor. Estranhei a pergunta porque na ficha que preenchi eu já havia indicado ser “parda”.
Por um momento, pensei ter assinalado incorretamente a resposta
sobre a minha cor. No entanto, após um olhar insistente da recrutadora sobre
mim, percebi que, na verdade, aquele “x” em “pardo” não era uma resposta
suficiente. “Pardo” não respondia à pergunta. Pelo visto, a questão na folha
estava desatualizada e a moça à minha frente tinha a função de atualizar e
reforçar tal informação.
A minha mente jovem tentou, então, elaborar uma resposta oral para
aquela pergunta e, para isso, trouxe à memória os rostos familiares. Pois
bem... O retrato estava posto na minha mente: meu pai, de pele mais escura do
que a minha; minha mãe, de pele mais clara; meu irmão do meio, ainda mais claro
do que minha mãe; e meu irmão mais velho, mais escuro do que os cinco da casa.
Na certidão de todos nós, a mesma informação: pardo.
Esse exercício mental mais me perturbou do que me ajudou a
responder à pergunta que estava posta na sala de entrevista. Era inédito para
mim a insuficiência da palavra assinalada na folha. A resposta “parda” para
perguntas sobre a minha cor estava pronta em minha mente, era quase sempre a resposta
imediata. Isso porque era assim que denominávamos a mistura de nossa família. A
ascendência: avô preto e avó branca. Portanto, pardos. Uma história mal contada
sobre uma bisavó indígena na genealogia... Pardos, sem dúvida.
Essa constante familiar se chocou, naquele momento, com o desejo de maiores explicações por parte da recrutadora. E eu continuava ali sem nenhuma resposta diferente da já exposta na ficha. Indígena eu sabia que não era – tampouco amarela. No entanto, da mesma forma que, para a moça à minha frente, o “x” na palavra “parda” não bastava, as palavras “branca” e “preta” pareciam não me caber.
Trabalho de Gente
Aquela já era a sua quarta semana de trabalho. Quase trinta dias
em que ele limpava cubículos, via e mexia em terra e carregava alguns pesos –
uns mais difíceis de levar, outros mais fáceis. Quase trinta dias em que ele já
se acostumara a ver, diariamente, choro por tristeza, por indignação e por
raiva. E ele, Miguelzinho, ia deixando nascer em si uma certa apatia.
Aquilo lá era trabalho? Pensava em seus primeiros dias. Contudo,
depois de ver seu documento assinado e ouvir a afirmação de salário, foi
abandonando essa e outras dúvidas. Era trabalho, sim. Finalmente, conseguiria
contribuir com a renda de casa. Contribuiria para ver o armário menos vazio. Já
até imaginava o rosto alegre de sua avó. Era trabalho.
Embora ainda estranhasse aquela forma de viver oito horas de seu
dia, sabia que era parte de seu dever se acostumar logo. Meu Deus! Sustentarei
a minha vida vendo a dos outros findar? Silêncio. Era preciso cuidar daquela
terra que a chuva bagunçara na última semana. E lá ia Miguelzinho,
acostumando-se. A pá na mão e o dia de seu primeiro pagamento na mente.
Enfim chegou. O dia de receber o seu primeiro salário veio junto com
algumas nuvens e uma garoa fina. Contudo, como o pagamento se daria apenas no
final do expediente, Miguelzinho foi tratando logo de realizar os seus deveres.
Soube de início que teria de carregar um peso e guiar uma multidão
desconsolada. Já fizera isso antes. Estava pronto.
Sua surpresa foi ver, no meio da multidão, uns cinco rostos
familiares. Aquilo lhe trouxe novamente o desconforto do início de sua
profissão. Aquele aperto no peito que lutara tanto para ignorar havia
retornado. A apatia antes conquistada não se sustentou. Miguelzinho teve de
abaixar o rosto para não ser visto e para esconder a tristeza que lhe visitou
em horário comercial.
Após ter visto os rostos, tratou de ouvir, então, o que diziam as
bocas enquanto ele carregava o baú. E ouviu o nome do defunto. Reconheceu-o.
Era um primo distante, não visto há muitos anos. Não quis ouvir o motivo da
morte. As informações obtidas já lhe bastavam. Eram o suficiente para ele
voltar a se perguntar: aquilo lá era serviço de gente?
Porém, fez o seu serviço com diligência. O mesmo esforço imputou
para esconder o rosto daqueles que poderiam lhe reconhecer. Assim, terminado o
trabalho, dispersada parte da multidão, ele se direcionou à sala onde seria
feito o seu pagamento. Pegou o valor devido por aquele trabalho fúnebre e foi-se
embora. Teria de se habituar com aquela estranheza novamente. Tinha fé de que
conseguiria. Antes um pouco de tristeza do que um armário vazio e a fome.
Então Miguelzinho voltou para casa depois de mais um dia de
trabalho. Mas aquele dia seria um pouco diferente, porque começou a passar pela
mente quantas pessoas de sua rua – sempre aquela com uma ladeira em que
prevalecia a terra e a poeira no verão e algumas poças de lama na temporada de
chuva – sabiam o que ele fazia; do que sobrevivia e como ajudava sua vó no
sustento da casa. Na verdade, aquele retorno para casa seria um longo caminho
de muitas sensações, alguma esperança e boa dose de desencanto.