Ateliê Literário | Edição 46 - Julho/2024

"Mão de rima" e "É duro ser José"

Ilustração: Fernando Siniscalchi

Joana Moreira

* Textos produzidos a partir da Oficina Poesia ontem e hoje: vozes, letras e suportes, ministrada pelos professores Pedro Marques e Leonardo Gandolfi, na Biblioteca de São Paulo, em junho de 2024. 

Mão de rima

Conheci o perfil do Edinho Santos por meio de um texto que estava revisando. Ele é surdo e faz poesia em Libras (Língua Brasileira de Sinais) no Instagram. Uma poesia feita com as mãos, com o corpo, alcançando lugares que talvez não tivessem a oportunidade de receber esse tipo de literatura.

Edinho é paulista, morador de comunidade, tem mais de 20 mil seguidores em sua conta no Instagram. Além de poeta, é educador e ator. Em sua bio ele se descreve como “mão de rima”, e esse é o formato de sua poesia, rimada com as mãos. É um corpo que fala, é um corpo que atua, é um corpo que dissemina arte e cultura.

Seu perfil é o @edinhopoesia e lá ele fala sobre a realidade da periferia, da comunidade surda e de família, entre tantos outros assuntos.

Algumas imagens de seus vídeos:




Além de levar a poesia para as pessoas surdas, Edinho faz em alguns vídeos a transcrição da Libras para o português, ora de forma escrita, nas legendas dos vídeos, ora com um intérprete narrando seus gestos. Assim, tanto alcança mais pessoas com sua arte, como aproveita para mostrar as dificuldades de quem é excluído da sociedade por não ouvir. Um vídeo muito interessante, com essa crítica, está no link: https://www.instagram.com/p/Ct98x-0JV6O/

Nele, vemos o poeta tirar o microfone da intérprete para que ela não traduza seu poema. Ao final da apresentação, Edinho devolve o microfone a ela e pede que traduza o que ele vai dizer. A ironia finaliza o poema-performance: “Nossa, que alívio ouvir alguma coisa! Querem entender o que falei antes? Desde que nasci tô sem entender nada, e vai ser assim a vida toda”. Assim, ele faz com que os ouvintes se sintam exatamente como ele se sente no dia a dia, sem entender nada e sendo excluído da sociedade por não ouvir.

Outro vídeo interessante sobre a representatividade da língua de sinais, está no link: https://www.instagram.com/reel/CxpulRvO6FG/?igsh=NW16em9nNzhsdzdm  Aqui, o poeta fala sobre a celebração do Dia Nacional do Surdo. A tradução simultânea, nesse caso, aproxima os ouvintes da arte do poeta.

 

É duro ser José

           Lá em 2010, na época da faculdade, não me lembro qual era atividade a fazer, mas dela saiu esse poema inspirado em “José”, de Drummond. Um tempo depois, em 2012, soube que a atriz Maitê Proença estava selecionando textos de autores “não conhecidos” para publicar em uma coletânea sob sua curadoria. Enviei esta versão de “José” e um outro textinho. Ambos foram selecionados para entrar na publicação, chamada É duro ser cabra na Etiópia (2013). A única exigência era de que os textos tivessem uma pegada engraçada, divertida, irônica. Achei que o meu “José” se enquadrava nessas características. O detalhe interessante é que o texto original acabou sendo um pouco modificado a pedido da Maitê, sem maiores explicações. Eu aceitei, já que estava interessada em ver meu nome publicado num livro, finalmente. Aqui, deixo a versão que foi publicada e, logo depois, a versão original (que eu, sinceramente, achava até mais divertida que a editada pela Maitê):

José

E agora, José?

A chuva está caindo,

o padre está atrasado,

e o coitado do cavalo

quase morre afogado.

E agora, Jose?

Já foi tocado o gado,

receberam-se os convidados

e com toda a confusão

entrou vaca no salão.

Para festa

dar folhetim

falta a noiva,

na hora do sim,

soltar um não colossal.

E chorando

correr pros braços

do fotógrafo

profissional.

E agora, José?”




E agora o original pela primeira vez publicado, um pequeno enredo seguido de poema:

“Fui convidada para ser madrinha de meu primo José, que ia se casar numa fazenda. Ele disse que seria uma festa inesquecível, com muita comida, muita dança e muita gente bonita. Mas, no dia da cerimônia, deu tudo errado. A comida não chegou, a música estava errada, e tinha gente para todos os gostos. Em meio a correria para tentar manter tudo funcionando corretamente, de repente, uma vaca escapou do curral e invadiu o salão de festas. Lá pelas tantas, caiu uma chuva muito forte, que acabou por interditar a pequena e única estrada que dava acesso ao local. O padre que celebraria a união do casal estava atrasado por causa do temporal, e a noiva desesperada não parou de chorar até ele chegar. Antes que mais alguma coisa desse errado, decidiram começar o casamento, e... Bem, não saiu exatamente do jeito que todos esperavam. Para explicar o que aconteceu, só mesmo reproduzindo aqui um poema que um dos convidados recitou no final da noite:

José

E agora José?

A chuva está caindo

e o padre atrasado,

o coitado do cavalo

quase morre afogado.

E agora José?

já tocaram o gado

receberam os convidados

e com tanta confusão

a vaca entrou no salão.

Para essa festa virar folhetim

falta apenas o golpe fatal:

a noiva, na hora do sim

grita um não colossal

e corre para os braços de outro,

o fotógrafo, amante profissional...

E agora José?”