Ateliê Literário | Edição 49 - Outubro/2024
Múltiplas políticas da poesia: Estado de Sítio, de Aldísio Filgueiras
Gabriel Fernandes de Miranda
* Texto produzido a partir da oficina “Amazônias
poéticas: culturas, heterogeneidades, hibridismos”, ministrada pelo professor,
pesquisador e escritor Fadul Moura, na Biblioteca Parque Villa-Lobos, em agosto
de 2024.
Aldísio Filgueiras,
nascido em Manaus em 1947, é poeta e membro da Academia Amazonense de Letras.
Publicou, entre outros, os poemários Malária e outras canções malignas (1976),
A República muda (1989) e Manaus, as muitas cidades (1994). Em
sua produção, destaca-se a estranha posição de Estado de Sítio, livro de
poemas impresso em 1968, mas não publicado por temor à repressão política da
ditadura militar. Re-editado em 2004, seus poemas convocam um tempo de profundo
entrelaçamento de literatura e política.
O livro está dividido em
quatro seções que apresentam unidade temática nos poemas ali agrupados. Em
“Informação do Amazonas”, predomina a construção poética da paisagem
amazonense, enquanto em “Noções de moral e cívica”, a tonalidade irônica
permite ridicularizar as instâncias de poder, sejam elas militar, familiar ou
moral. Em “Poemas sobre a educação e a família”, tecem-se imagens da infância e
do ambiente escolar, entremeadas aqui e ali por cenas e metáforas eróticas. A
última seção, cujo nome coincide com o título da publicação, produz efeitos de
desconcerto ao ironizar o processo de modernização pelo consumo, o imperialismo
norte-americano e a posição da classe média no tecido social brasileiro da
década de 1960.
Se a presença da política
se anuncia já no título, que pode ser tomado como remissão ao regime ditatorial
inaugurado pelo golpe de 1º de abril de 1964, os poemas de Estado de Sítio
têm lugar para a circulação de imagens localizadas no espaço amazônico. É
notável a presença das imagens naturais de paisagens fluviais e dos personagens
ribeirinhos, como em “Cerimonial da Lavadeira”, que convivem, no entanto, com
espectros modernizantes como os capitalistas em “Dos investidores na Amazônia”
ou a operária em “Da operária”. A oscilação entre um imaginário amazônico,
regido por aquilo que Francisco Foot Hardman (2010, p. 141) chama de um
paradigma ligado ao “exotismo aquático-vegetal”, e um cenário moderno e
autoritário, marcado pela profusão das mercadorias e do procedimento de
alienação, está difundida no poemário, mas é reforçada por alguns poemas nos
quais é possível ler a tensa convivência desses temas e imagens poéticas.
É o caso de “Geração do deserto”, situado em “Informação do Amazonas”:
A geração do deserto
não fomos negros
mas somos tristes
muitas vezes agosto
lambia o gelo
dos homens
e eles geravam
filhos silenciosos
no vento
não fomos negros
não temos ciência
mandinga do solo
a fala macia
dos homens do rio
morre de espanto
diante das fábricas
do mar
fabril
febril
mas somos tristes
como um peixe
liso, frio, apenas
comendo o silêncio
que a várzea
tem de reserva
não fomos negros
mas somos tristes
árvores
Alguns elementos da
poética de Estado de Sítio podem ser visualizados nesse poema, como a
ausência de letras maiúsculas ou as metáforas eróticas ou sexuais, legíveis na
segunda estrofe. Em termos formais, destacam-se a inauguração do poema através
de um morfema negativo, “não”, o que provoca o leitor a procurar a definição da
voz poética coletiva. Esse nós poético se deixa intercalar, no entanto,
por versos voltados para o exterior: “os homens” ou “a fala macia/dos homens do
rio”. No jogo e na alternância do si mesmo e a alteridade, a identidade se descortina.
Desde um ponto de vista
temático, os signos da modernização podem ser visualizados em “ciência”,
“fábricas” e “fabril”. Imagens que são, no entanto, introduzidas por
procedimentos de negação, de distância e de homofonia com signos outros. A
proximidade entre fabril e febril lança, então, a crítica ao processo de
modernização amazônico. A entrada da paisagem fluvial na versão industrial do
sistema econômico capitalista é tratada como um processo inflamatório – o que,
desde o presente, remete-nos ao filme de Maya Da-Rin, A Febre (2019).
Esse cenário doentio é
contrastado com elementos naturais, caracterizados pela tristeza: os peixes no
silêncio e, por fim, as árvores. A convivência dos contrários parece gerar uma
contaminação ou maculação da cena amazônica e seus simbolismos de beleza
exuberante ou exotismo. A existência animal e vegetal torna-se não mais
elemento de assombroso sublime, mas de triste sobrevivência. O poema, assim,
aproxima-se de tendências contemporâneas de figurações de elementos inumanos na
poesia, como a “poesia vegetal” da produção de algumas poetas como Júlia de
Carvalho Hansen ou Josely Vianna Baptista (cf. SANTOS, 2021). Entre a presença
de uma perspectiva ecológica – as árvores que parecem observar a passagem do
tempo humano à beira dos rios – coloca-se uma incipiente comparação racial, o
poema indica e enfatiza um crime de grandes proporções na devastação de outras
existências mais além da fronteira do humano.
Os poemas de Estado de Sítio performam uma crítica ao ordenamento sócio-político capitalista e ditatorial, mas também permitem tocar uma duplicidade do pensamento que insere as imagens convencionalmente associadas à Amazônia em diferença. Mantidas no poema, elas agora aparecem com agência, afinal parecem ser as árvores o sujeito da enunciação de “Geração do deserto”. Essa dotação da fala serve ao procedimento de denúncia que atravessa o livro, transformando-o também em um apelo contra a devastação do mundo – das árvores, dos rios, dos peixes ou mesmo das fábricas – que tem se revelado cada vez mais decisiva para o futuro de catástrofe climática.
Referências
FILGUEIRAS, Aldisio. Estado de
sítio. 2. ed. Manaus: Editora Uirapuru, 2004.
FOOT
HARDMAN, Francisco. A Amazônia como voragem da história: impasses de uma
representação literária. Estudos De Literatura Brasileira Contemporânea,
n. 29, p. 141–152, 2007. Disponível em
SANTOS,
Elisa Duque Neves dos. Poesia vegetal: uma trilha biopolítica pela
poesia contemporânea brasileira. 2021. 243 f. Tese (Doutorado em Literatura
Comparada) - Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense, Niterói,
2021.