Ateliê Literário | Edição 42 - Março/2024

O dia do GALO

Ilustração: Fernando Siniscalchi

Helen Soares de Matos

       Cenários sertanejos para contar histórias. A oficina “O sertão múltiplo”, ministrada na Biblioteca de São Paulo, em janeiro de 2024, pelos professores Susana Souto, da Universidade Federal de Alagoas, e Joel Vieira, indígena Katokinn, professor e escritor, inspirou a participante Helen Soares de Matos.

Boa leitura! 


Por influência da mãe e decisão, desde pequena Regina (Regis) esculpiu no próprio coração o nome do Clube Atlético Mineiro.

        No quarto, ao lado de outros objetos afetivos, está sempre o copo do Galo, o relógio do Galo, o escudo do time enquadrado em uma moldura dourada. Em uma das paredes está a foto dela com o Ronaldinho Gaúcho na versão atleticana. A paisagem da foto: o Mineirão. Na escrivaninha dela, ao lado da mochila preta e branca e dos livros e cadernos da graduação em geografia, fica sempre à mão a caneta preta e branca com tarja dourada, algum livro sobre futebol, geografia ou sobre futebol e geografia. Em um gancho de madeira com metal dourado repousa o chaveiro, ou melhor dizendo, o escudo preto e branco a congregar as chaves de casa, do carro e do armário no trabalho. No guarda roupa, entre as demais roupas, uma toalha de banho do CAM costuma sempre estar lavada e pronta para o banho da vez. Em meio a outras roupas dela e de cama, estão várias edições de camisas do galo. Uma delas, autografada por vários craques que admirava, foi emoldurada e exposta na sala da casa com grande orgulho.

        Mas do galo verdadeiro e da galinha, aves, desde a adolescência Regis não quer saber. Diferentemente de jogadores de futebol cruzeirenses, prestes a enfrentar os jogadores do Clube Atlético Mineiro independentemente de a fase ser propícia ou não, Regis foge como um diabo da cruz de galos e galinhas desde aquele fatídico dia.

        Era um domingo na casa da madrinha. Almoçaram, conversaram, riram, discutiram a escalação e o iminente placar vitorioso da partida a acontecer no final daquela tarde. Depois do almoço, no quintal metade cimento e metade terra, passando pelo pé de pitanga, que era uma das poucas árvores restantes na casa desde o seu formato original, seguia a passos preguiçosos para o descanso em uma rede colorida. Foi então que, do nada, ouviu um barulho de batida seguido de uma dor nunca antes sentida na vida. Balançou o corpo desvairadamente como a pegar fogo e deu berros de um porco prestes a ser abatido. Em meios às penas, todas aquelas bicadas lançadas por todos os cantos possíveis, os gritos de gente, do galo, das galinhas, latidos da cachorra, o olhar desinteressado e preguiçoso do gato despertado pelo alvoroço, a camisa branca rasgada e suja pela terra e sangue a escorrer, finalmente, a madrinha com as mãos também sangrando conseguiu desgrudar das costas da afilhada as esporas do galo, do maldito galo...

        Maldito galo... maldito dia... maldito trauma dessas aves que nunca abandonou Regis, nem mesmo em um dos trabalhos de campos de geografia para um sítio agroecológico com verduras, legumes, frutas e, sim, galinhas e galos, presas no galinheiro do qual ela mantinha distância e para onde apontava os olhos esbugalhados sem piscar.

        Mas, apesar do trauma gravado na alma da mesma forma que o Clube Atlético Mineiro, Regis nunca abandonou o gosto por frango frito, quiche de frango, coxinha bem recheada com peito de frango, empadinha de frango, galinha ao molho pardo, frango com quiabo e angu, salpicão com bastante batata palha e frango desfiado, bife de peito de frango e, principalmente, um frango bem assado, prato principal daquele dia na casa da madrinha. 

        Ahhhhh.... Simmmmm.... Meu Deus! Era mesmo! O prato principal foi mesmo frango assado com o interior bem macio e suculento e a parte de fora douradinha. Agora, parando para rememorar o episódio, maldito galo é coisa nenhuma. Bendito galo, forte, salvador da parentada toda! E, não, o ataque não foi o comportamento natural de um galo reagindo ao território invadido ou que sentiu a ameaça de algum predador. A ação da ave, tampouco, pareceu ter como causa puramente os assassinatos dos familiares, afinal de contas, a criatura já havia presenciado com postura pacífica o abate de muitos deles naquele quintal para fazer ao molho pardo. Foi vingança e, ao que parece, foi por causa do fim das identidades de galinhas e galos: a privação de ciscar livremente, tomar sol e banho de terra, copular, botar e chocar no tempo certo, conviver com os pintinhos, dormir ao por do sol e acordar anunciando - aos cantos e cacarejos - os primeiros raiozinhos de cada manhã e, ainda, o ódio pela maceração dos pintinhos machos por não terem serventia na indústria da carne. Criadouros industriais dos diabos! Consumo de carne e ovos desenfreados dos infernos! 

        Na tarde daquele domingo, aquela criatura fez justiça com as próprias esporas. Êta, GA-LO FOR-TE, VIN-GA-DOOOORRRR.