Ateliê Literário | Edição 46 - Julho/2024
"Peixe-Poema"; "Sambinha da Baixada Santista"; "Levando fumo" e "Memória viva do verme (Dedicado a Brás Cubas)"
Juliano Lourenço
* Textos produzidos a partir da Oficina Poesia
ontem e hoje: vozes, letras e suportes, ministrada pelos professores Pedro
Marques e Leonardo Gandolfi, na Biblioteca de São Paulo, em junho de 2024.
Peixe-Poema
Para descansar um pouco das muitas andanças dessa vida,
parei às margens do rio Baquirivu e lá eu vi um peixe-barrigudo que dizem de
nome Guaru, o responsável por nomear a cidade de Guarulhos-SP. Pesquei-o e me
contou uma história curiosa e um tanto fantasiosa que ouviu do povo, ou melhor
daqueles que querem dominar o povo. Dizem esses senhores de mente tacanha que
havia pelas voltas daqui, ao redor do Baquiri, uma população indígena dócil e
preguiçosa, todos de baixa estatura e barrigudinhos, com uma pança redonda
similar ao peixinho, por isso seriam batizados pelos colonizadores de modo amistoso
e jocoso como índios-guarus. Dá boa relação e interação entre o bom português e
os ingênuos indígenas nasceria Guarulhos.
Tanto se contou essa história pra boi (peixes também) dormir
que a letargia se espalhou e quase se enraizou nestas terras e em seus frutos.
Anos e anos depois, não à toa, seria conhecida como uma cidade-dormitório e um
lugar onde nada se cria.
Por sorte, outros ventos ecoaram uma outra história possível
e aos poucos foi sendo revelado, rio acima rio abaixo, o legado silenciado dos
verdadeiros herdeiros deste povoado, os guerreiros indígenas Maromomi. Estes
nada tinham de preguiçosos, eram bravos e fortes, além de lutarem até o fim
contra os invasores lá da Europa. Um a um foram caindo diante das armas do
homem branco, no entanto, o último da distinta linhagem amaldiçoou a terra
profanada e seu cuspe selou uma maldição, que, ainda hoje afirmam, recair
sobre a cidade, que dorme e não sonha.
Dito isso, o peixe-barrigudo cuspiu-me um poema:
RITUAL INDÍGENA
NO QUARTO DE DORMIR
Dizem que foi quando o índio
cuspiu,
desde então,
nada nessa terra cresce de
verdade.
Tudo superficial, sem raiz.
Como uma máscara de ferro
o escarro mantém, até hoje,
sonhos adormecidos
e desejos voltados para
o além mar de gente lá fora.
Eis nossa identidade cenográfica:
Elefantes brancos vagam em ritmo
de crise existencial.
Sentinelas atiram veneno em
nossos quintais.
Falsos líderes permanecem focados
num falso poder.
Um imenso cemitério de intenções.
À margem florescemos nós,
estrambóticos habitantes do
subsolo
Algumas centenas de caras limpas
lavadas em rio de olhares
sinceros.
Resistimos,
cuspindo todos os dias,
esperançosos em reverter
a maldição ancestral.
Forte, num deserto infindo.
Aqui eu existo.
E minhas crias ainda respiram,
sussurram, suspiram.
Somos histórias prontas para
serem esquecidas.
(Virgínia Bohêmia)[1]
Tendo
como base a propagação deste mito através da tradição oral, a poeta Virginia
Bohemia, pseudônimo da artista guarulhense Aline Fonseca, filha de retirantes
como tantos de igual sina que vieram em busca de melhores condições de vida,
cria seu poema e na escrita dos seus versos se inscreve como sujeito. “Aqui eu
existo”, afirma a poeta. Uma mulher subvertendo a lógica
colonizadora-patriarcal. Existe ainda, e em um lugar que é preciso resistir e
re-existir. “Forte, num deserto infinito. / Aqui eu existo” tendo ciência da
fragilidade de sua condição, pois suas crias “sussurram e
suspiram”, não estão plenamente livres, suas falas não alcançam a todos.
As crias do eu-lírico sussurram como as
vozes dos artistas pela cidade, soam baixo os versos dos poetas que se negam a
se diminuírem para caberem na imagem forjada dos indígenas-guaru, barrigudinhos
do falso mito fundador. Pelo contrário, somam seu coro à indignação do
guerreiro maromomi “cuspindo todos os dias, / esperançosos em reverter / a
maldição ancestral”.
Guarulhos, cidade formada por povos migrantes de diferentes
regiões ao longo dos anos. Nos séculos XX e XXI, a região com o maior número de
nordestinos fora do nordeste. O grande fluxo de gente, sem as devidas
preocupações por parte dos poderes públicos, gerou uma série de questões
sociais. À parte as
dificuldades enfrentadas por sua população, a cidade desponta com uma frutífera
vida cultural. E seus fazedores de cultura resistem diante do cenário
estabelecido de que nada se cria, seguem contando e cantando suas histórias
mesmo que sejam “histórias prontas para serem esquecidas”.
O Guaruzinho me contou que o poema foi publicado pela
primeira vez na 2ª edição do fanzine Rebelião Maromomi em dezembro de 2017. Os
zines integravam uma iniciativa de retomar ações do coletivo Jornal Dialética
(2014-2016), um grupo de artistas que atuavam em Guarulhos para incentivar a
literatura na cidade. Dentre as iniciativas estava a organização de um sarau
mensal nomeado Carolina Maria de Jesus, escritora que durante boa parte da vida
morou na favela e dividiu sua visão da periferia com o mundo. Carolina foi e é
uma inspiração para muitos, sobretudo na periferia.
Em 2021, alguns integrantes da organização do zine Rebelião
Maromomi fundaram uma editora chamada Ctrl+v, o primeiro livro nomeado Rebelião Maromi - arte apesar da maldição,
foi contemplado pela lei Aldir Blanc de incentivo à cultura durante a pandemia
de Covid-19, nele o poema “Ritual indígena no quarto de dormir” foi publicado
novamente.
[1] FONSECA, Aline K. Rebelião Maromomi - arte apesar da maldição, org. Juliano Lourenço, 2021, editora Ctrl+v, SP. Informações e vendas pelo Instagram: @editoractrlv
Sambinha da Baixada Santista
Segunda-feira
tem sol e sal
corpo
suado e copo igual
um
carteado, cerveja e samba
entardecer
em roda de bamba
Um
traz a carne outro carvão
fogo
brasa embrazando o som
Um
puxa letra, outro emenda o tom
Compondo
assim uma canção
O
dia insiste em renascer
a
bossa é triste se faz tecer
Se
vir ressaca? Já tem o mar
Se
afogar? Casa com Iemanjá
* Poema sobre melodia de Thiago
França, Malagueta, Perus e Bacanaço.
São Paulo: Goma Gringa, 2014.
Online: https://www.youtube.com/watch?v=xBICtQeVOCU
Levando fumo
Não
sou nada.
Nunca
serei nada.
Não
posso querer ser nada.
Nem sonhos tenho, pois foram todos privatizados.
Memória viva do verme
Dedicado a Brás Cubas
Agradeço
sua dedicatória, meu caro Brás Cubas,
o
seu reconhecimento singular ao meu trabalho inglório
em
uma performance sagaz.
Primeiro
deleite
a
roer na forma de jovem traça
as
folhas do papel-livro.
Após
vida em toda a sua desgraça,
alimentei-me
e fartei-me de suas frias carnes, defunto autor.
Sem
olhar a quem, que lá num sou de regular quando o assunto é fome,
além
do personagem também comi o homem, um autor defunto
famoso
por sua escrita ferina e voraz,
sua
crítica à sociedade atroz.
Assaz-Assis!
Saboreei
cada linha do seu corpo e corpus,
encontrei
real contentamento em suas memórias póstumas,
que
não te deixem passar batido em uma leitura desatenta,
sobretudo
a sofisticada ironia.
Monumento
Assis!
Árvore
fundamental da literatura,
bendito
o fruto das palavras cortantes de quem leva o machado no nome,
sobrevivente
à indiferença do seu corpo que aqui jaz.
Semente...
Ao
se tornar raiz,
matéria-prima
da obra imortal do grande