Ateliê Literário | Edição 36 - Setembro/2023

Rearranjando os fragmentos de Haifa

ILustração: Fernando Siniscalchi

Andre Massabki

Confira o texto produzido pelo participante Andre Massabki, a partir da oficina O Romance Feminino Contemporâneo Árabe, ministrada em julho na Biblioteca de São Paulo, pela professora Anselma Garcia de Sales, no âmbito do projeto Literatura Brasileira no XXI. O encontro propôs a discussão de aspectos ligados ao gênero e à identidade, notadamente marcados pela construção da ideia de nação, presentes nos romances Haifa Fragments, da palestina Khulud Khamis (1975) e Country of Origin, da egípcio-americana Dalia Azem (1977).

Boa leitura!


Pensar a literatura árabe, em suas diversas realizações e autorias ao longo da história, resvala quase que inevitavelmente na seguinte ideia: dispersão. Dispersão de um povo nômade que, a partir da expansão islâmica, foi se fixando numa infinidade de territórios dos mais distintos, junto com suas marcas linguísticas e culturais, ao mesmo tempo que incorporavam aquelas dos grupos que encontravam por longas peregrinações, resultando numa miríade de dialetos – pode-se dizer quiçá línguas? – e até identidades variados que desafiam qualquer definição simples de etnia. Com a presença colonial de impérios como o britânico e o francês no Oriente Médio e no norte de África, tal processo de fragmentação só se intensificou, gerando fissuras e fraturas sobre as nações árabes e seus sujeitos, que, desde o século passado, vivenciam uma constante instabilidade sociopolítica e econômica, como a ferida de um hemofílico que persiste em se manter aberta em sangue vivo.

Quando nos deparamos com a literatura feita por mãos palestinas, o cenário não poderia ser diferente: se durante o Mandato Britânico poetas faziam de suas obras instrumentos da consciência nacional árabe, acirrada com a Grande Revolta contra o colonialismo sionista, a Nakba de 1948 levou a uma divisão de experiências entre exilados e “remanescentes” em Israel, cujos laços viriam a se fortalecer em solidariedade após a Guerra dos Seis Dias, passando pela do Yom Kippur e pela Primeira Intifada. A noção da Palestina como sujeito coletivo entre as inúmeras comunidades na diáspora, evocada por nomes como Fadwa Tuqan, Mahmoud Darwish, Ghassan Kanafani etc., sofre um duro golpe com os Acordos de Oslo, quando sua autodeterminação em Gaza e Cisjordânia é condicionada à cooperação da Autoridade Nacional junto ao Estado de Israel, rejeitada pela maioria dos palestinos dentro e fora dos territórios ocupados. A noite escura, estendida por mais 30 anos de lá para cá, reconfigurou o fazer literário de seus escritores, que têm se voltado com força para o tema dos direitos humanos em narrativas autobiográficas, fazendo uso de suportes digitais como blogs ou novos círculos de leitura frequentados por seus antepassados.

Nesta nova geração de autores, o nome de Khulud Khamis se destaca. De mãe eslovaca e pai palestino, sua formação multicultural o tem permitido uma produção literária singular, uma atuação feminista com fortes recortes étnicos e territoriais, de modo que ambas as facetas caminhem lado a lado. Entre seus trabalhos, o romance Haifa Fragments, publicado em 2015, retrata a urgência de se pensar a questão palestina, apresentada pelo cronotopo do fragmento, enquanto temática geral e pelos seguintes desdobramentos: identidade fragmentada; situação social da mulher; ocupação/violência estatal; e negação/resignação dos sujeitos.

O enredo da obra narra os conflitos da designer de joias Maisoon, jovem palestina nascida e criada na cidade israelense de Haifa que atua na Machsom Watch, organização que dá suporte para que crianças dos territórios ocupados recebam atendimento médico além das fronteiras. Seu ativismo a faz buscar se reconectar com a terra de seus ancestrais, algo que desagrada tanto seu pai, que insiste em lhe dizer que a luta pela libertação da Palestina é algo do passado, quanto seu namorado, formado em arquitetura que vive de bicos como professor particular de matemática. Não bastasse isso, ela ainda se vê num dilema entre seu resgate filogenético como palestina e a sensação de ser rejeitada pelas pessoas nos campos de refugiados enquanto “árabe israelense”, o que é reforçado por sua relação com Amalia, uma judia dona de uma loja de joias que se interessa pelo trabalho da jovem.

A fragmentação identitária é uma constante ao longo da narrativa de Haifa Fragments, atravessando em especial a protagonista Maisoon. Já de início, ela demonstra um tremendo mal estar à simples ideia de adentrar a Cisjordânia, pois em toda sua vida teve acesso a moradia e água encanada, direitos negados a quem vive nos territórios palestinos, a ponto de se questionar se será bem-vinda ali. No outro lado do Muro da Vergonha, tenta, inclusive, disfarçar suas origens árabes ao se encontrar com Amalia, temendo que isso gere tensão entre as duas, ainda que a deixe confusão sobre seu lugar naqueles espaços. Não raros são os episódios de discussão com sua família, seja com a mãe, que a questiona se ela realmente queria trazer para a mesa de jantar de uma casa cristã o namorado muçulmano, sua amiga cisjordaniana e a judia com quem trabalha; seja com o pai, com quem tem os embates mais fortes, sobre se eles e aqueles que ficaram para trás nos territórios são, de fato, um mesmo povo com as mesmas demandas.

Todos esses dilemas de identidade vão se desenvolvendo em meio a muita violência: já nos primeiros capítulos, Maisoon testemunha um menino da Cisjordânia sendo impedido de cruzar a fronteira para realizar seu tratamento contra câncer. Além disso, ouve sua amiga Shahd falar ao telefone com os familiares, avisando que ficaria “na cidade”, sem citar o nome Haifa por temer que a polícia grampeasse a ligação. A brutalidade também se evidencia nos campos visitados pela personagem principal, com o povo se esforçando para ganhar dinheiro com trabalhos informais e sobreviver em condições subumanas, a exemplo das mulheres que vendem artesanatos em Ramallah e Abu Hamza. São recorrentes momentos de microagressões cometidas por Amalia ao referir-se a palestinos, como, por exemplo, ao perguntar a Maisoon sobre um tal Ahmad, um rapaz árabe “de bom coração” e o melhor mecânico que ela conheçe, ou quando tenta se redimir, dizendo que foi educada a odiar o outro povo, mas que a via como filha, a fim de apaziguar-se com a subjetividade da colega.

Falando em negações e resignações, o que não faltam são personagens se fechando subjetivamente diante do estado de violência incessante que experienciam sem parar. Ziyad, o namorado de Maisoon, se recusa a se relacionar com os territórios ocupados, pois busca se estabelecer profissionalmente em Israel como arquiteto. Para tanto, precisa ser reconhecido como “árabe israelense” entre seus pares judeus, entregando-se a uma perspectiva individualista oposta às empreitadas da companheira. Resignados também são alguns cisjordanianos que a protagonista encontra pelo caminho, do menino com câncer cabisbaixo ao ser barrado na fronteira, ao velho pai de Shahd, que olha para as próprias mãos com olhos sem brilho como se fosse inútil. Impera entre eles um abatimento ao ver as forças armadas massacrando toda e qualquer levante, por mínimo que fosse, contra a segregação que sofrem. Abatimento que parece ser compartilhado por Majid, pai de Maisoon, cujo passado militante é descoberto por acidente pela filha, quando ela revira poemas escritos por ele, exaltando a luta pela libertação de seu povo, num baú empoeirado – físico e metafórico.

Por fim, as mulheres são uma força motriz que carregam o enredo, não só pelo protagonismo da jovem designer de joias, como ainda pela relação desta com as demais pares: vários são os diálogos com Shahd, que gostaria de usufruir de uma série de direitos e atos que a amiga de Haifa aproveita com prazer e sem medo de ser repreendida na Cisjordânia, onde até mesmo fumar um cigarro num espaço público como a rua é ousado para uma mulher. Curiosamente, são elas que muitas vezes sustentam famílias inteiras, com os homens e até meninos sendo detidos arbitrariamente, forçando-as a fazer um artesanato um meio de subsistência resistente ao apartheid, uma antítese do luxo elaborado das joias da loja de Amalia.

Khulud Khamis consegue num único romance modular um nó temático entre feminino, identidade e nação, quando, numa canetada só, inscreve as vicissitudes que as mulheres no contexto árabe vivenciam, com Maisoon desafiando formulações tradicionais de gênero em suas relações interpessoais. Denuncia, assim, a instabilidade sociopolítica como fator que impossibilita a fixação de identidades nacionais, com territórios e psiques cindidos; e torna evidente a noção de nação como “comunidade imaginada”, um conceito que extrapola fronteiras naturais e impostas, tal qual a protagonista procura cruzar muros e mentalidades. Haifa Fragments é uma obra fundamental para a literatura árabe (mesmo fora da língua e do espaço em que se situa), com relevantes contribuições para (re)pensar esse nó forjado e citado acima, bem como os limites e as possibilidades do fazer literário aos árabes, tanto os que permanecem na terra de origem quantos os que descendem daqueles desterrados, pelos mais variados motivos e circunstâncias. E como beduínos, caminham pelo mundo buscando sombra e água fresca, onde quer que haja e pela distância que for, para se fazer enquanto árabes, num rearranjo novo dos fragmentos de uma ideia tão antiga quanto a poesia milenar anterior a Muhammad.