Ateliê Literário | Edição 46 - Julho/2024
"Um grande incêndio na poesia contemporânea: as mulheres queimando"; "Samba de laje" e "Carinhosas-a-dias, mostra"
Lilian Escorel
* Textos produzidos a partir da Oficina Poesia
ontem e hoje: vozes, letras e suportes, ministrada pelos professores Pedro
Marques e Leonardo Gandolfi, na Biblioteca de São Paulo, em junho de 2024.
Um grande
incêndio na poesia contemporânea: as mulheres queimando[1]
Desde que comecei a observar a cena da
poesia contemporânea, o que aconteceu de modo mais assíduo a partir de 2017,
quando passei a interagir e a ler as diversas produções impressas e digitais
pululando pelos quatro cantos do país, chamou-me a atenção vozes que por longo
tempo estiveram silenciadas. Pareceu-me então que elas gritavam em coro,
compondo uma espécie de harmonia polifônica. Dediquei-me a ler tudo o que o meu
interesse pessoal ditava de modo amador e sem um crivo específico, senão o de
deixar-me arrebatar e assombrar pelas variadas poesias. Buscar aprender o que
elas tinham e têm a dizer sobre a vida do presente, do passado e do devir. Com
o tempo, a poesia escrita e performada por mulheres, de todas as idades, mas
com evidente predomínio de gerações mais novas, foi ganhando espaço em minha
formação poética como leitora e escritora. Evocam lutas históricas e, ao se
inscreverem na linha do tempo, convidam à participação.
Para esta oficina, selecionei duas poetas: Anelise Freitas, mineira de Juiz de Fora, e Tatiana Pequeno, nascida no subúrbio do Rio de Janeiro. Há uma correspondência entre os dois poemas selecionados. Um convite ao incêndio. Ao fim do alijamento. Ao resgate do que é raiz, do que é voz autêntica. Pincei Anelise Freitas do zine de um manifesto lançado em 2018, o Manifesto Respeita!, com o apoio do coletivo Mulheres Que Escrevem. Algumas das poetas nele publicadas atraíram-me com suas vozes alçadas num círculo de respeito por ocasião da primeira edição, em 2019, do Festival Mário de Andrade - A virada do Livro. Festival, cabe lembrar, criado por outra mulher de respeito, Josélia Aguiar, na direção da Biblioteca Mário de Andrade naquele momento. Jornalista e escritora baiana, depois de revolucionar a Festa Literária Internacional de Paraty em 2017 e 2018, Josélia estendeu a São Paulo mais agitação, reflexão e transformação ao trazer expressões e produções periféricas para o sistema literário estabelecido.
museu nacional.2
Tatiana Pequeno
em setembro de
noventa
meus colegas queimaram
pontas agrestes
de um cabelo
foi durante o
recreio
da quarta série
alguém levou um
isqueiro
e por trás do
balanço maior
um pequeno
incêndio foi
provocado
nada comparado
ao
desaparecimento
do
crânio que
luzia
mas
meus colegas
também
queriam abrasar
a memória
de uma infância
alijada
atearam fogo
aos fios de
contas de uma história
disseram
– você é a mais feia dentre nós
& como os
assassinos de hoje
gritaram como
dominicanos
– queimem-na
sou um animal
muito antigo
também serei mulher-bomba[1]
“EXTRA! EXTRA! FAÇO VOTOS QUE VÁ À FRANÇA”, DIZ
Anelise Freitas
você e a sua
segunda família
faço votos que
vá encontrar com baudelaire
faço votos que
vá à frança
fumar seu
cigarro,
entupir o
bueiro ou
falar francês
faço votos que
vá à frança
e algum francês
queime
o punho de sua
camisa
numa espécie de
acidente
e você só saiba
xingar na sua língua materna
porque é também
das mães
dos corpos de
mulher
que nascem os
homens
que na frança
você tenha
o mesmo ponto
de vista
daqueles que
sentem sua terra
violada que
você tenha o ponto
de vista de uma
mulher
violada que
precisa estar
nessa sala/ é
possível ver
a cortina
cafona faço votos
que no final
tudo que tem
por dentro vire
caco
(vômito do não
dito)
o plano era esse
no final
falar e te
desejar
uma boa viagem
e que não volte
mais porque
são nossas as notícias que daremos.[2]
[1] Pequeno, Tatiana. Onde estão as bombas. Juiz de Fora: Edições Macondo, 2019.
[2] SÃONOSSASASNOTICIASQUEDAREMOS.
Zine preparada e diagramada por Movimento Respeita! com o apoio de Mulheres Que
Escrevem e Caju Cadernos. 2019.
[1] Para a criação do título, vali-me da afirmação de Danielle Magalhães "Acredito haver um grande incêndio na poesia contemporânea. E são as mulheres que estão queimando", publicada na quarta capa de Cult - Antologia Poética, n.1, 2019.
Samba de laje
Na
laje a roda vai assanhar
no
couro o fogo samba no pé
é
corpo santo canto de fé
tambor
cuíca e berimbau
Lá
vem gingando Maria e Zé
saia
rodada rosa na mão
bebo
quizomba pisa no pé
João
sem braço é o que ele é
João
e Zé não se bicam não
Maria
em roda fogosa vai
dançar
girar é o que ela quer
o
corpo santo no berimbau
Pega
no fogo no couro o mé
esquenta
ginga chute no pé
um
quebra-quebra na laje deu
que
quebra-pau a roda tremeu
o
corpo o sangue o chão bebeu
o corpo santo no berimbau (2x)
Online: https://www.youtube.com/watch?v=xBICtQeVOCU
Carinhosas-a-dias[1], mostra
Te Amo, Eu Também Não
Ah! eu queria tanto que você se lembrasse
essa era a nossa canção
não a do Prévert
a nossa era a do Gainsbourg
Naqueles dias nós éramos tão felizes
brincávamos naquela praia
nas noites quentes de verão
você era a minha onda
eu era a sua ilha nua
você ia e vinha no meu ventre
e eu te acolhia
você ia e vinha
e a onda crescia
você ia e vinha
e eu me retinha
você ia e vinha
até que exaustos
quebrávamos
na areia
fazendo muita espuma
os corpos
estendidos
juntos
bem unidos
Mas pouco a pouco
o tempo da dor chegou
e assim bem de mansinho
sem fazer ruído
o mar levou
nossos passos
Foi numa tarde fria de outono
que o nosso amor acabou
As folhas mortas recolhem-se com a pá
as lembranças e os lamentos também
foi assim que Jacques Prévert cantou
Sim, é certo,
as folhas mortas recolhem-se com a pá
mas nossa canção não
“Je t’aime, moi non plus”
essa canção de Gainsbourg
vem e vai
no meu ouvido
nossas ondas
ressoando
minhas conchas
delirando
ilhas de amor
irresolutas
Por
Três Anos
eu
fui DIAS
LILIAN
Dias
não confundir com
mulher-a-dias
[1] Escorel,
Lilian. Carinhosas-a-dias. São Paulo: Patuá, 2023.