Ateliê Literário | Edição 46 - Julho/2024
"uma espécie de desapego" e "Renzi, Piglia e eu"
Raisa Christina
* Textos produzidos a partir da Oficina Poesia
ontem e hoje: vozes, letras e suportes, ministrada pelos professores Pedro
Marques e Leonardo Gandolfi, na Biblioteca de São Paulo, em junho de 2024.
uma espécie de desapego
Certa vez me deparei com uma série de fotos, nas quais se vê uma mulher à beira de uma lagoa e prédios ao fundo. Ela lança às águas duas letrinhas brancas bem recortadas, “e” e “u”. A mulher veste saia vermelha, camisa azul florida e tênis brancos. O cabelo castanho ondulado está preso e os óculos de sol parecem levantados, no alto da cabeça. De seu rosto, vê-se apenas a ponta do nariz e a curva da bochecha.
A primeira imagem é um
plano aberto, no qual a mulher aparece em meio à paisagem, agachada na margem
da lagoa. Nas três imagens seguintes, a câmera se aproxima da mulher e deixa
ver mais claramente seu gesto: lançar as letras sobre o espelho d’água. Ela não
só as lança, como faz um movimento com a mão direita no sentido de empurrá-las
para longe. Nas últimas imagens, as letrinhas vão se perdendo uma da outra e
deixam de formar o “eu” sugerido no início da ação. À distância, transformam-se
em dois pontinhos brancos boiando perdidos.
A performance compõe o Projeto EU, realizado em 2009 pela poeta
Érica Zíngano (@zinganoerica), na periferia de Fortaleza. Na época, Érica pediu
a alguns amigos, que viviam em diferentes cidades pelo mundo, que fizessem a
mesma ação e registrassem em fotografia. O registro dos amigos espalhados pelo
mundo, que se dispuseram a fazer parte do projeto, repetindo a performance da
Érica, foi algo que me tocou profundamente. Acho que o projeto é
uma espécie de desapego
despedida desprendimento do
velho
eu uma recusa da noção de
autoria
um marco de íntimas
transformações
um perder-se da figura em meio
à paisagem
um elogio aos gestos das mãos
dos nossos amigos
Renzi, Piglia e eu
Os diários de Emilio Renzi
foram
escritos por Ricardo Piglia
desde
a juventude, ao longo de quase
sete
décadas, em centenas de caderninhos
de
capa preta e linhas azuis.
Os
diários de Renzi foram muitas vezes
lidos,
revisados, reescritos e editados
por
Piglia, que no fim da vida publicou
os
três volumes: Anos de formação,
Os dias felizes e Um
dia na vida.
(Não
posso deixar de sentir:
a
ausência do artigo, no primeiro;
o
artigo definido, no segundo;
o
indefinido, no terceiro.)
Nas
entradas datadas, Renzi narra
o
trivial do cotidiano enquanto pensa
os
gêneros literários, as engrenagens
da
ficção e o modo como a História
pública
afeta a experiência pessoal.
Mas
há também textos sem data
nos
quais um outro narrador está
ao
lado de Renzi e com ele perambula
pela
cidade, passeando por bares
e
livrarias. Juntos, eles rememoram.
Renzi
está presente em romances
anteriores
escritos por Piglia. Às vezes
gosto
de Renzi e outras vezes o detesto.
Mas,
sobretudo, inquietam-me as entradas
em
que ele relata a dificuldade de escrever.
Renzi
e Piglia envelheceram juntos
e
este poema é dedicado aos dois
que
inventaram um retrato de escritor
cheio
de fraturas por onde eu também
posso
entrar para ler como quem desenha.
* Texto
inspirado na obra Os diários de Emilio
Renzi, de Ricardo Emilio Piglia Renzi (1941-2017), composta pelos três
volumes Anos de formação (2015), Os anos felizes (2016) e Um
dia na vida (2017),
publicados no Brasil pela Todavia, respectivamente em 2017, 2019 e 2021.