Edição 50 - Novembro/2024 | Tema

A Literatura Negra como herança de um Brasil Crioulo

Ilustração: Fernando Siniscalchi

 Ao pensarmos na formação da literatura nacional e seus marcadores raciais, na maioria das vezes surgem algumas indagações em torno das temáticas que envolvem escritos produzidos por autores negros, além de uma tensão de como classificar essas produções. Resgatando o conceito de Cuti Silva em seu Literatura negro-brasileira (2010), entendemos a nomenclatura como a necessidade de interseccionar raça e aspectos geográficos, ou seja, uma forma de demarcar um lugar para a produção literária de autores negros brasileiros.

Compreender que a literatura é fruto de um contexto social, cultural e político é observar que ela é escrita na história, e, o Brasil como palco de inúmeros acontecimentos, movimenta os processos culturais. Assim se deu no período do Brasil Crioulo, como mostra Darcy Ribeiro na obra O Povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil (1995), ao apontar a produção açucareira por mãos de pessoas negras escravizadas, mas que também contribuíram em diversos outros aspectos culturais, mesmo não tendo por anos o seu devido reconhecimento.

A oficina teve como intenção apresentar um panorama da literatura negra brasileira a partir de um Brasil Crioulo, resgatando a maneira como esses autores negros de prosa e poesia, expõem o que foi e ainda é o Brasil. Assim fez Luiz Gama em Bodarrada (1859), ao denunciar a situação vulnerável que vivia o negro brasileiro. A história da literatura nacional nos mostra que a primeira romancista foi negra e abolicionista, trata-se de Maria Firmina dos Reis, autora do romance Úrsula. Na obra ela retrata um amor impossível de ser concretizado e traz o ponto de vista de Túlio e de tia Suzana, ambos escravizados. Eles não são retratados de forma estereotipada, mas dotados de subjetividade, de humanidade, não da forma grotesca como então eram mostrados os personagens negros, quando escritos por autores brancos. 

Outro fator interessante trabalhado na oficina foi o recorte de gênero somado às produções literárias, ser um autor ou autora negra e construir vozes a partir dessas marcações, atina outro olhar em relação à recepção desses corpos no Brasil, desde a maneira conforme vistos por olhos hegemônicos até como se inscrevem frente a uma necessidade de resistirem e sobreviver. E a literatura funciona também como um lugar para a reinvenção de novas cosmologias, um grande exemplo são as vozes e personagens que aparecem em Diário de Bitita, de Carolina Maria de Jesus. 

Hoje em dia, temos uma ampla gama de obras de autoria negra, isso devido a uma luta do Movimento Negro Unificado (MNU) pela implementação da lei 10.639 (2003) que torna obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas. Uma importante coleção que tem chegado às escolas públicas são os Cadernos Negros (nome dado em homenagem à Carolina Maria de Jesus). A publicação, inicialmente feita na década de 70 e custeada pelos próprios autores, teve, entre seus fundadores, Luis Silva (Cuti), Márcio Barbosa e Esmeralda Ribeiro. 

Os Cadernos Negros surgiram em um contexto importante, no qual havia vários pesquisadores e escritores negros que não encontravam espaço para publicar suas obras, devido ao racismo do mercado editorial e no mundo acadêmico. Daí a importância de ter uma lei que obrigue as escolas a adquirirem as obras desses autores e autoras, que de outra forma cairiam no ostracismo.

Essa literatura tem o poder de despertar e inspirar as novas gerações para darem continuidade a uma luta que não é de hoje, mas foi iniciada quando aqui chegaram os primeiros navios negreiros, passando pelo Brasil Crioulo. Foi no período da escravidão que surgiram os primeiros quilombos, espaços de luta e resistência e um conceito ainda importante na contemporaneidade. Conforme nos mostram os estudos de Beatriz Nascimento, o quilombo representa a luta por uma sociedade livre e que ele não termina com a abolição da escravatura, mas que ele é ressignificado na atualidade, fato que pode ser visto no conto “Na favela do recanto”, de Akins Kintê, presente nos Cadernos Negros nº 40, a favela como um lugar de reinvenção da vida negra. 

Ao final das oficinas, os participantes produziram textos poéticos que tiveram como base todo conteúdo dado. O desafio foi escrever de forma literária interseccionando a questão racial e também de gênero. Uma vez que, tendo a literatura como arma para a humanização e desconstrução de um povo, trazê-la para os debates do feminino e das masculinidades é dialogar com um Brasil contemporâneo e fomentar temáticas que sempre existiram, mas que hoje conseguimos olhar com mais atenção e pontuar. Apesar de todo atravessamento e plano de extermínio, a literatura sempre será um espelho que nos colocará de cara com a nossa própria humanidade.


Por
Nelson Flávio Moraes e Patrícia Anunciada

Nelson Flávio Moraes é formado em Letras e mestre em Estudos Literários pela UNIFESP. Sua dissertação teve como tema: "A construção da masculinidade e do afeto do homem negro na literatura negro-brasileira: um olhar sobre os Cadernos Negros nº 40”. Atua também como formador de professores, leciona no município de São Paulo e colabora desde 2018 no LAPES (Laboratório de Práticas de Escrita Criativa da UNIFESP). 

Patricia Anunciada é formada em Letras pela PUC-SP, mestre em Literatura pela Unifesp e doutoranda em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela USP. Tem um canal no YouTube chamado Letras Pretas no qual divulga obras que se adequem à lei 10.639, que torna obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas. Já publicou poemas nas antologias "Escrituras negras - a mulher que reluz em mim" e "Vozes da Periferia".

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