Edição 48 - Setembro/2024 | Tema

Mundos possíveis da ficção sertaneja

Ilustração: Fernando Siniscalchi

Convém reconhecer, desde logo, a imprecisão do título desta oficina. A categoria "prosa sertaneja" não corresponde a uma noção evidente, estanque ou autoexplicativa, sendo necessário conferir-lhe precisão e consistência. No caso, a prosa analisada acomoda textos díspares, escritos em circunstâncias diversas, mas com traços e aspectos formais comuns. Entre O quinze (1930), de Rachel de Queiroz, e Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, existem analogias, muitas delas associadas ao chamado “Romance de 30”. As proximidades com O Cabeleira (1876), de Franklin Távora, e, amor, (2024), de Mateus Ântoni Rúbia, já não são tão imediatas. A ideia de trabalhar com ficções escritas nos séculos XIX, XX e XXI decorre do esforço de cobrir amplo recorte temporal e, também, da proposta de destacar a diversidade estilística que a literatura é capaz de mobilizar.

A ficção forja mundos possíveis, alguns plausíveis, outros muito improváveis ou fantasiosos. Ela, portanto, não se satisfaz com as regras e mecanismos do nosso mundo, precários como são. Quando se volta para temas dramáticos, como é o caso da seca e de quadros pandêmicos, ela nos faz evocar memórias e aguça nosso interesse por ocorrências históricas, propondo uma aliança entre empiria e imaginação. Essa associação alcança o leitor por intermédio do estilo, que é datado, particular. O intuito da oficina foi flagrar, nos quatro romances analisados, artifícios comuns, relativos ao enredo, à intriga, aos argumentos, diálogos e tópicas, às personagens, decoros e convenções mobilizadas.

Ao final, os participantes foram encarregados de reescrever um dos capítulos de O quinze ou Vidas Secas, ou de acrescentar um capítulo de modo a sanar lacunas deixadas pelos autores. Trata-se, a um só tempo, de estimular a escrita e de incentivar a emulação do estilo dos autores. No fim das contas, pudemos retomar o título da oficina e contestar o emprego de “prosa sertaneja”, no singular, deixando evidente que a prosa é “sertaneja” não porque supõe uma identidade prévia, mas na medida em que constrói uma figuração particular, repleta de historicidade.

O itinerário íngreme de Chico Bento e o destino trágico da cadela Baleia continuam a estimular o interesse dos leitores. Resta a nós, professores, recorrer a essas criações e, por intermédio delas, demonstrar que o mundo perderia muito do seu vigor e interesse caso relegasse à literatura um lugar marginal. Os mundos possíveis da ficção demonstram, no mínimo, que o nosso mundo corresponde a uma possibilidade dentre outras.

 

Por Cleber Vinicius do Amaral Felipe

Cleber Vinicius do Amaral Felipe é professor do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Autor dos livros Heroísmo na singradura dos mares: histórias de naufrágios e epopeias na conquista ultramarina portuguesa (Paco, 2018); Locus Horrendus: representações do extremo (Fonte, 2021); Quem conta um conto... Machado de Assis e a Poética da Reticência (Pedro & João, 2023). 

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