Edição 43 - Abril/2024 | Tema
A Literatura do Brasil pelo Norte: 'Subjetividades Caboclas'
Para
pensar sobre o tema das subjetividades caboclas (e em toda gama de valores
consequentes dessa denominação), as obras da coleção Intérpretes do Brasil parecem ser um caminho interessante, pois
elas, segundo o prefácio de Silviano Santiago (In: Intérpretes do Brasil,
3 v., 2002, p. XV),
interessam-se […] pelo habitante que, já
nascido nestas terras, buscava construir (ou inventar) um pequeno domínio de
que seria proprietário exclusivo, sem reconhecer os limites das amarras
políticas e fiscais metropolitanas, ou ainda pelo estrangeiro que, ao adotar a
nova pátria, queria colonizá-la à sua própria maneira, dela extraindo o que
havia de mais rentável para si próprio e para os seus descendentes. Todos eles
procuravam se autodefinirem e definir as várias regiões do país em palavras,
gestos e ordens de independência (sempre relativa, é claro) com relação aos
países europeus e, a partir do século XIX, com relação a todo e qualquer país
que questionasse a soberania nacional.
Assim,
a ideia de Nação passa pela acomodação de um grupo social específico num espaço
de poder onde o mestiço parecia não caber:
De modo geral, viviam todos os
‘brasileiros’ em pequenas comunidades, rurais na maioria dos casos, não de
maneira completamente indiferenciada à semelhança de animais num conglomerado,
mas em situação social amorfa, que beirava muitas vezes o caos. Essa situação
não deixava de ser preocupantemente negativa para os que tinham o ideal de
nação” (Idem, p. XVI).
O
trecho acima faz pensar em espaços urbanos atuais como favelas, alagados, áreas
de ressaca, pontes, canais como os descritos na letra da canção “Rios, pontes e
overdrives”, de Chico e Science e Nação Zumbi, ou ainda em “Da lama ao caos”, que
mostra não apenas a imobilidade geográfica dentro do espaço urbano de Recife –
uma metrópole brasileira – mas também o imobilismo social como uma metonímia do
Brasil).
Na
letra fria da ideia de ‘Unidade para o Brasil’, mostrar o país colonial como ‘Independente’
significaria apresentar o país independente como Nação, que, por sua vez, marca
um desejo de identificar o colono (branco ou mestiço [caboclo]) como homem
livre e, portanto, como cidadão. Por outro lado, e há vários lados desse
prisma, o
Carnaval é o Brasil que deu errado. Porque
o Brasil, como Estado-Nação, foi projetado para excluir […] para concentrar
renda, desarticular sentidos coletivos de vida e aniquilar as culturas
não-brancas. Esse Brasil como Estado-Nação deu certo! Mas a brasilidade é o que
pode fazer esse Brasil dar errado. E o Carnaval é a vitória da brasilidade
sobre o Brasil. É a reconstrução do sentido coletivo de vida; é a reconstrução
de uma ideia de encanto diante do mundo para lidar contra a aniquilação que
esse desencanto traz. É a vitória do corpo sobre a morte” (Luiz Antonio Simas,
em vídeo depoimento publicado na rede social X, em 14/02/2024).
Como
uma espécie de alternativa à polarização das subjetividades, no contexto do
Brasil colonial, nasce a Cordialidade como mediadora dos conflitos na
sociedade brasileira. Nesse espaço, qual lugar caberia à mestiçagem que gera a
subjetividade O caboclo? Sabe-se que tal sujeito não media os conflitos, pois
ele apenas existe num lugar discursivo alheio às tensões. Na disputa entre
“metropolitanos x nativos, fazendeiros x escravos, colonos x independentistas,
brancos x negros, patrões x operários” (Santiago. Op. Cit., p. XXI), o
Caboclo é um elemento neutro e, portanto, sem peso para qualquer tipo de
decisão.
Desse
modo, na construção da hierarquia social do Brasil, o Caboclo (sujeito
miscigenado, portanto, longe da “pureza” europeia) seria como a frase
barthesiana (Le plaisir du texte, 1973, p. 80): “elle implique des
sujétions, des subordinnations, des rections internes. De là son achèvement: comment une hiérarchie
pourrait-elle rester ouverte?”
Etimologicamente, o nome “caboclo” vem do
tupi kari'boka,
que significa “descendente de branco”. No entanto, essa linha explicativa sobre
a origem do termo não é consensual. Alguns etimólogos indicam a origem
tupi do termo kuriboka,
que quer dizer “filho de mãe índia e pai branco”; enquanto outros afirmam que o
termo tupi caa-boc
significa “aquele que vem da floresta”.
Sobre a composição étnica do Pará a partir da
inserção de negros africanos escravizados no espaço social e econômico
colonial, Vicente Sales aponta o seguinte em sua obra O Negro no Pará (1971, p. 69):
Há
extrema heterogeneidade. Os contatos interétnicos se processaram intensamente,
isentos do mais rudimentar preconceito racial, fundindo num todo os três
estoques fundamentais: o branco, o índio e o negro. A presença de grupos
indígenas isolados e de numeroso grupo mais ou menos marginalizado – que não é
o índio, tampouco civilizado, a grande massa de caboclos – vivendo na periferia das
comunidades amazônicas – e cristalizada a assimilação de novos padrões
culturais prossegue agindo e interagindo em todos os setores sociais – não
invalida a tese: o negro é uma presença marcante.
Para Sales (1971, p. 80), o “mestiço do índio, e o caboclo,
constituem sem dúvida a maior parcela da mão-de-obra economicamente ativa da
Amazônia. Foi ela, primeiramente agrupada nas missões e aldeias jesuíticas, depois
transformadas nos diretórios pombalinos, o esteio da economia extrativista que,
desde os tempos coloniais, constitui a base econômica da região”. Mas para
conferir centralidade à população negra na formação social do Pará a partir da
segunda metade do século XIX, Sales (1971, p. 82) acaba elegendo a mestiçagem
como vilã ao mencionar que o “branqueamento
da população realmente se realiza através desse processo. E significa mestiçagem”.
É também na obra de Vicente Sales que aparecem referências
literárias que importam na discussão sobre a subjetividade cabocla: “A
estrutura social [...] também se modificava. Surgem então as figuras tão
importantes, e ainda tão pouco estudadas, do seringalista e do coronel, tendo
este inspirado uma das obras mais representativas da literatura amazônica: O coronel sangrado, de Herculano Marcos
Inglês de Sousa.” Para Sales (1971, p. 85), “consagrou-se a grande propriedade,
sem limites demarcados e o tipo de comércio de aviamento, tão peculiar à nova estrutura de economia extrativista,
como o fora antes o comércio do regatão [...]. O regime escravista definhava. E
ao primitivo servo da gleba, que
sempre fora o caboclo [...] agora se juntava novo contingente, admiravelmente
retratado por Euclides da Cunha (À margem
da história), Alberto Rangel (Inferno
Verde), Alfredo Ladislau (Terra
imatura) e tantos outros estilistas: era o seringueiro nordestino, chegado bruto
e amansado pela selva”. E
continua: “O sistema se consolidou e se expandiu. Organizou-se politicamente,
tornando-se a oligarquia dos coronéis [...] destacada personalidade no contexto
social amazônico”.
É dessa forma que Raimundo Morais descreve a “mulata de
chinela na ponta do pé”: “cabeção branco rendado, saia de chita em ramagens
vermelhas, trunfa presa ao coque mordendo o molho de patchuli” (Apud Sales, 1971, p. 88). Pois,
Esse o retrato da
mestiça paraense, cuja descrição que se segue é menos comprometedora e mais
fiel ao tipo que transitava pelas ruas de Belém: ‘De indumentária ligeira, de
acordo com o clima, esse exemplar encheu a cidade. Para trás de 25 anos ela
ainda vendia, dentro de balaítos maneiros, nas casas de família, o famoso cheiro de papel feito de madeiras
raladas, trevos, jasmins, rosas...” (Apud
Sales, 1971, p. 88)
Essa mulata de
chinela na ponta do pé foi também cozinheira, lavadeira, amassadeira de açaí e moça do calcanhar de frigideira na
pessoa de um padeiro, dum açougueiro e até mesmo dos comendadores, que acabavam
chamando o padre... Sempre limpa, rescendendo a jasmin e a priprioca, é quase
desaparecida, existindo uma ou outra no Mercado de Ferro [Ver-O-Peso], vendendo
tacacá, mingau de milho ou arroz, maniçoba e peixe frito (Apud Sales, 1971, p. 88)
Mas é na obra de Dalcídio Jurandir que essa subjetividade
cabocla surge numa perspectiva mais complexa. “Nesse primeiro livro [Chove nos campos de Cachoeira], surge a
personagem que será uma espécie de fio condutor da narrativa em todos os
romances do Ciclo [do Extremo Norte] (à exceção de Marajó). O menino Alfredo, filho do branco Major Alberto e da negra
dona Amélia” (Senna & Pereira na Introdução da edição de Belém do Grão-Pará, 2004, p. 15). Mais
adiante, lê-se: “Belém do Grão-Pará é
o quarto romance publicado pelo autor e acompanha, precisamente, a
transferência do menino Alfredo de Marajó para Belém, onde, abrigado por uma
família aparentada, da pequena classe média decadente, dará prosseguimento aos
estudos que iniciara rudimentarmente em Cachoeira”
A sexualização da personagem Libânia – empregada e “cria da
família” Alcântara – surge no romance por meio dos desejos de Virgílio, que
recupera a colonização não apenas do espaço do “sertão” amazônico, mas também
de seus corpos femininos. Libânia é mestiça e envolvida nos desejos de seu
patrão, o dono da casa e pretenso dono do corpo daquela cabocla:
Mesmo esta, rueira,
encorpando a olhos vistos, já se
enchendo, como toda mulher, de seus nove-horas, acabaria sumindo. Era só ver os
modos dela, quando voltava da rua, quente do sol, suando nas maçãs do rosto de índia, vermelha como se estivesse
saindo de uma olaria, e o cheiro... A esta observação súbita, seu Virgílio
corou, como se alguém tivesse escutado (Jurandir, 2004, p. 51 [grifos
nossos]).
Ainda sobre Libânia, chama atenção a descrição a seguir:
[...] pés de tijolo, a saia de estopa, apressada e ofegante, era uma serva de quinze anos, trazida, muito menina ainda, do
sítio, pelo pai, para a mão das Alcântaras. Entrava da rua, com os braços
cruzados, carregando acha de lenha e os embrulhos, sobre os rasgões da blusa
velha” [...] “Queriam elas o menino para despachar a cabocla? Onde iria dormir?
No quartinho da despensa ao lado da Libânia? Era isso conveniente?” (Jurandir,
2004, p. 52 [grifos nossos]).
Nesse e na maioria dos romances do chamado Ciclo do Extremo
Norte, de Dalcídio Jurandir, assim como nos primeiros romances de Milton
Hatoum, a mestiçagem e suas redes complexas de relacionamentos estão presentes
tanto na composição ficcional em si quanto na experiência de leitura dessas
obras, como em tantas outras narrativas de e sobre a região Norte do Brasil no
século XX. Essa presença marcante não está devidamente descrita na crítica
canônica, talvez por ser entendida como algo menor, sem a importância para
gerar tal interesse analítico, mas incide sobre uma temporalidade que importa
na discussão sobre as subjetividades caboclas.
Por Yurgel Caldas
Yurgel
Caldas é graduado em Letras pela Universidade Federal do Pará (1997), mestre em
Teoria Literária pela Universidade Federal de Minas Gerais (2001) e doutor em
Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais (2007). Cumpriu
estágio de pós-doutoramento na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
(2011/2012). Atua como professor na graduação do curso de Letras (com
habilitações em Inglês e Francês) da Universidade Federal do Amapá e na
pós-graduação no Mestrado em Letras (PPGLET) na mesma instituição. Tem
experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Comparada, atuando
principalmente nos seguintes temas: Amazônia, poesia, narrativa, fronteiras e
trocas culturais.