Edição 19 - Abril/2022 | Tema

Modernismos pelo Brasil: as poéticas dos anos 1920

Ilustração: Fernando Siniscalchi

A oficina “Modernismos pelo Brasil: as poéticas dos anos 1920” partiu da seguinte pergunta: qual foi a dimensão nacional concreta no movimento modernista em sua primeira década? Ainda que o ciclo de oficinas em que esta se insere ocorra por ocasião dos 100 anos da Semana de Arte Modena, o foco do projeto não é a comemoração do evento em si, mas a diversidade e a complexidade do que se denomina modernismo brasileiro. A condensação das energias difusas propiciada pela Semana de 22 causou um impacto nacional que até hoje não foi suficientemente avaliado: a centralidade até então incontestável da Capital da República (o Rio de Janeiro), com sua onipotente Academia Brasileira de Letras (de que mesmo o boêmio Emílio de Menezes e o rebelde Lima Barreto queriam fazer parte) era posta em xeque por uma província (São Paulo). 

Lembremos que um dos participantes do movimento que organizou a Semana era membro dessa instituição: o escritor Graça Aranha, famoso autor de Canaã (1902). Pois bem, em 1924, Graça Aranha faz uma conferência no interior da Academia, chamada “O Espírito Moderno”, confrontando os imortais em seu solo sagrado. Ao ter a sua proposta de modernização das letras nacionais negada, Graça Aranha rompe com a Academia Brasileira de Letras e se retira dela, fato único, até onde sei, na história literária brasileira, já que ainda hoje se fomenta e se comemora (mesmo em setores progressistas) a entrada de figuras culturais de relevo nessa instituição, mesmo que seu poder objetivo não tenha cruzado a década de 1930. 

A consequência dessa perda de legitimidade do Rio de Janeiro e de sua Academia foi a desestabilização do mapa literário brasileiro dos anos 1920. Sem ter a Capital como única referência e sem muita segurança para confiar numa outra província, os diversos núcleos de produção cultural do país tiveram que se repensar de modo mais enfático, assumindo uma posição de relativa autonomia no cenário nacional. O que se vê, então, é o aumento da importância dos grupos literários, pois caberia a eles formular uma posição cultural e literária específica diante de um cenário em crise. Houve grupos modernistas por todo o Brasil: em Porto Alegre, Belo Horizonte, Belém, Maceió, Natal, São Paulo, Recife, Cataguases, Rio de Janeiro, Salvador, para falar só dos anos 1920; em 1930, surge um grupo modernista em Cuiabá; nos anos 1940, em Curitiba, São Luís e Florianópolis; em 1950, em Manaus. 

Como me restringi aos anos 1920 e começo dos anos 1930, fiz uma escolha de sete grupos locais e uma tendência intergrupos, que foi a Antropofagia. Assim, apoiando-me não exclusivamente em livros de poemas, mas sobretudo em revistas literárias, a oficina apresentou às/aos participantes o grupo de São Paulo reunido inicialmente em torno da revista Klaxon, com poemas de Mário de Andrade, Luís Aranha, Tácito de Almeida, Guilherme de Almeida; o contexto carioca constituído de vários pequenos grupos, com destaques para poemas de Ronald de Carvalho, Ribeiro Couto, Prudente de Morais, neto e Manuel Bandeira; o grupo mineiro do jornal Diário de Minas e da revista chamada A Revista, de que lemos poemas de Emílio Moura, João Alphonsus e Carlos Drummond de Andrade (deste alguns poemas publicados em revistas e jornais e nunca republicados em livro); de Porto Alegre, lemos poemas de Ruy Cirne Lima, Ernari Fornari, Athos Damasceno Ferreira e Augusto Meyer; do Recife, vimos os entrecruzamentos entre modernidade e regionalismo em Austro-Costa, Manuel Bandeira, Joaquim Cardozo, Benedito Monteiro e Ascenso Ferreira; do grupo cearense da revista Maracajá, lemos Jader de Carvalho, Franklin Nascimento, Antônio Garrido, Rachel de Queiroz e Edigar Alencar; do ambiente belenense tivemos contato com Bruno de Menezes, Abguar Bastos, Clóvis de Gusmão e Eneida; por fim, numa linha transversal antropofágica, lemos poemas de Cunhambebe (pseudônimo provavelmente de Oswald de Andrade), Pagu, Clóvis de Gusmão, Luís de Castro e Raul Bopp.

O excesso de nomes citados se justifica pela exemplificação que traz a diversidade da poesia modernista em sua primeira década. Aí constam nomes de poetas consagrados ao lado de nomes pouco ou nada conhecidos, autores de volumosa poesia completa junto de poetas que nunca publicaram livros e que precisam ser rastreados em revistas ou jornais. Some-se a esses nomes “novos” uma diversidade surpreendente de contextos socioculturais e de diversidades locais presentes no léxico, na dicção e em alguns torneios sintáticos. Passamos da neve que ensaboa estátuas em Caxias do Sul ao sol “satânico” que maltrata retirantes em um “Ceará Moleque”, da Recife fantasmagórica da madrugada à São Paulo toda feita de asfalto e lamas de várzea, do cinema de arrabalde carioca aos subúrbios afro-indígenas de Belém, além de transitar pela ironia e pelo senso original do absurdo da lentamente moderna Belo Horizonte. 

São justaposições estimulantes que circunscrevem um conjunto de contradições das mais diversas ordens e que apenas começamos a olhar com o devido cuidado. Pelo lado eufórico, de alegria destrutiva e caminhos em aberto (que se contrapõe a outro lado, infelizmente muito atual, de bloqueio histórico, nacionalismo repressivo e desorientação estética), esse mapa traz um movimento ainda vivo em suas potencialidades de descoberta, pesquisa e formulação crítica. Que moquém gostoso!   

Por Leandro Pasini

Confira alguns dos trabalhos produzidos pelos participantes durante a oficina:

Emerson Aparecido dos Santos Bezerra
Renato José Bicudo

Leandro Pasini é professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal de São Paulo. É autor de A apreensão do desconcerto: subjetividade e nação na poesia de Mário de Andrade (Nankin, 2013) e Prismas modernistas: a lógica dos grupos e o modernismo brasileiro (Editora da Unifesp, no prelo). 

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