Publicações | Criação Literária
O sujeito indígena na literatura

A partir do século XVI, a figura do indígena vira um dos objetos preferidos entre aqueles que aqui aportavam. Uma curiosidade enorme sobre aqueles corpos descobertos, exibindo saúde e beleza superiores aos europeus, enfiados em roupas desenhadas para abafar pudores e falta de banho. Carcomidos pelo longa viagem atlântica, opressos numa doutrina de esconder o corpo, a nudez plástica e limpa do índio deve ter sido, de fato, uma visão do paraíso aos primeiros ibéricos que pisaram a Bahia.
A esse quadro idílico, descrito por viajantes, seguiu-se a constatação horrenda, ao olhar cristão, de que esses gentios, por exemplo, não acreditavam em Deus, praticavam poligamia e comiam seus rivais por pura vingança. Como era possível àquelas beldades falarem língua tão rústica e ágrafa e praticarem atos tão danados? Foram décadas de debates até provarem teologicamente que aqueles seres tinham alma, condição do humano europeu.
Mas ser humano em vez de animal não tornou a relação nativo-invasor menos tensa. À época, a Coroa Portuguesa tinha duas missões para com esses homens e mulheres. Uma religiosa: salvar essa gente do pecado convertendo-a ao cristianismo e, portanto, buscando cortar pela raiz sua identidade, no que foram em parte bem-sucedidos. Felizmente, a exuberância cultural e linguística, que hoje sabemos complexa, inclusive em suas formas de escritas não alfabéticas, resistiu até nossos dias, apesar do genocídio ainda em curso.
A outra missão foi econômica. Aquele enorme contingente de mão de obra, enquanto posse do Rei, devei ser empregado no enriquecimento do Estado Português. Os índios trabalharam na fundação das primeiras vilas, cozinharam e caçaram para o luso, guiaram-no pelo território bordado por rios e montanhas. Houve, assim, uma empresa dupla: braços trabalhando para o Rei, que queria expandir seu império; e almas catequisadas para o Papa, cuja meta era dilatar a boa nova pelo mundo.
Tamanha objetificação, no entanto, notada no registro idílico (Pero Vaz de Caminha ou José de Alencar) e no pragmático (Manoel da Nóbrega ou José Bonifácio), tem sido modificada pelos indígenas. Principalmente a partir da Constituição de 1988, cada vez mais eles vêm escrevendo, editando e espalhando seus próprios livros, obras de literatura ou de ensaios interpretativos sobre seu passado, presente e futuro. São, agora, sujeitos das narrativas escritas ou gravadas em português e mesmo em línguas nativas.
No mês do Dia Internacional dos Povos Indígenas, celebrado em 9 de agosto, a oficina “Indianismos na Literatura Brasileira”, de Fábio Martinelli Casemiro, discutiu o legado das populações originárias. Parte do conteúdo produzido segue abaixo, contando, inclusive, com um texto de Julie Dorrico, que ministrou o webinar “Literatura indígena: a produção autoral contemporânea e seus ensinamentos”, ação do projeto Literatura Brasileira no XXI e do Festival Literário do Vale do Ribeira 2021. Escritora e pesquisadora indígena, Dorrico falou com mediação de Casemiro, que também escreveu suas reflexões sobre assunto.
Por Pedro Marques
Veja, a seguir, texto produzido como resultado da oficina "Indianismo na Literatura Brasileira", ministrada em junho por Fábio Martinelli Casemiro, dentro da programação da Biblioteca Parque Villa-Lobos.
Confira também conteúdos criados sobre o tema por Julie Dorrico e Fábio Casemiro Martinelli, que conduziram o webinar "Literatura indígena: a produção autoral contemporânea e seus ensinamentos", ação do projeto Literatura Brasileira no XXI e do Festival Literário do Vale do Ribeira. A íntegra da atividade está disponível no canal do YouTube do Sistema Estadual de Bibliotecas Públicas de São Paulo e você pode acessar, clicando aqui.

Pedro Marques é poeta, compositor e crítico. Professor de Literatura Brasileira da Unifesp. Com Pablo Simpson e Caio Gagliardi, organizou as revistas de poesia Salamandra, Camaleoa e Lagartixa. Com Gagliardi, editou o site Crítica & Companhia. Editor do site Poesia à Mão. Escreveu, entre outros, "Em Cena com o Absurdo" (1998), "Olhos nos Olhos" (poesia, 2008), "Clusters (poesia, 2010) e "Cena Absurdo" (poesia, 2016).