Edição 26 - Novembro/2022 | Tema
A felicidade é negra
...e lá fiquei com meus botões: neste ano do Centenário da Semana de Arte Moderna, quando tantas tintas e saliva vêm rolando há oito meses, sem falar das polêmicas e revisões, que proposta um mínimo diferente poderia eu fazer ao Projeto Literatura Brasileira no XXI, cuja marca tem sido originalidade dos temas e reflexões?
Tive então a ideia de oferecer a oficina “Imagens Negras no Modernismo (de 1922 aos anos 1930)”, recordando-me, entre outros, de um prazeroso evento presencial de que participei no mês de março no SESC 24 de Maio, em torno do livro Modernismos 1922-20221, organizado por Gênese Andrade, um dos grandes lançamentos do ano, reunindo trabalhos de mais de trinta especialistas de várias áreas, brasileiros e estrangeiros. Fui convidada a comentar o capítulo “Representação e Representatividade Negra nas Artes Visuais”, da professora e artista plástica Renata Felinto, alertando que não sou historiadora de arte, sou professora do curso de Letras na UNIFESP e no primeiro semestre ministrei a disciplina Relações culturais Brasil-França, com ênfase no Modernismo. Logicamente Tarsila do Amaral não poderia faltar, embora, como se sabe, ela não esteve presente nas atividades da Semana, pois àquela altura residia na capital francesa, e só meses depois veio ao Brasil quando então conheceu, através de sua amiga Anita Malfatti, escritores modernistas como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Menotti del Picchia, com eles formando o célebre Grupo dos Cinco.
Em 1923, novamente de volta a Paris e estudando com Fernand Léger, famoso pintor cubista, Tarsila criou A Negra, cem anos depois uma tela considerada uma espécie de símbolo do modernismo. Em entrevista à revista VEJA em 1972, um ano antes de sua morte, a artista, filha de ricos fazendeiros paulistas nascida em Capivari em 1886, ou seja dois anos antes da Abolição da Escravidão, recordou que sua inspiração provinha das “reminiscências de ter conhecido uma daquelas antigas escravas (...) [d]a nossa fazenda, [que] tinha os lábios caídos e os seios enormes”2.
Ora, uma das provocações de Felinto no texto mencionado acima, e com a qual concordamos, é indagar: se esta “antiga escrava” fazia parte do entorno da família Amaral, teria ela um nome? Ou era simplesmente (mais) uma... negra? Boa pergunta e bom tema de pesquisa em arquivos familiares ainda inexplorados da artista.
Em nossa proposta para a oficina, o intuito de aproximar Mário de Andrade e Tarsila, essas duas figuras icônicas do modernismo, justificava-se não só pela amizade afetuosa nascida entre ambos poucos meses depois da Semana de Arte Moderna, mas sobretudo pelos vínculos e projetos estéticos que reuniram, ao longo da vida, dois artistas empenhados em “abrasileirar” as artes e a cultura brasileira. Depois da temporada no Brasil em 1922, sua obra daria uma guinada. Tarsila atenderia ao enfático chamado de Mário em carta de 15 de novembro de 1923 (“vem, Tarsila, abandona Paris. Vem para a mata virgem”), dando uma resposta estética, decidida a tornar-se “a pintora do Brasil”. Duas obras neste sentido são emblemáticas - Carnaval em Madureira e Morro da Favela, ambas de 1924, nas quais são retratadas apenas personagens negras, especialmente mulheres e crianças.
O ano de 1924 seria interessantíssimo para Mário e outros modernistas, como a própria Tarsila e seu então marido Oswald de Andrade, quando realizam a mítica viagem pelo Brasil em companhia do escritor franco-suíço Blaise Candrars, autor da Anthologie Nègre (1920), coletânea de contos africanos de estrondoso sucesso numa Paris que se deslumbrava, desde a década anterior, com as “artes negras”. Porém, peço vênia às queridas e queridos leitores, mas não poderei tratar deste fascinante tema nos limites deste editorial e recomendo a leitura de uma obra de referência: A aventura brasileira de Blaise Cendrars (Edusp, 2001). É nesse ano que, em viagem a Minas Gerais, Mário conhece o jovem Carlos Drummond de Andrade, com o qual travaria uma de suas mais fecundas e instrutivas correspondências3. E, confesso a vocês, uma dessas cartas – aliás, a primeira que ele envia a Drummond em 10 de novembro de 1924 – é para mim uma das mais surpreendentes e marcantes, por motivos óbvios para quem já viu minha fotografia. Mário, em cujas veias há gotas de sangue africano, censurava o poeta mineiro indignado por não ter nascido... em Paris! Uma tristeza, como era triste para o autor de Pauliceia Desvairada (1922), ver aquele moço trancado em seu gabinete, lendo, lendo, lendo, sobretudo autores franceses, sem “gostar de verdade da vida”. E quem ensina isso é, segundo Mário a “chamada gente baixa e ignorante”. Já adivinharam a cor. E olhem só o que aprendeu com eles:
"[Essa gente] é que conserva o espírito religioso da vida e fazem tudo sublimemente num ritual esclarecido de religião. Eu conto no meu [poema] “Carnaval carioca” um fato a que assisti [na] avenida Rio Branco. Uns negros dançando o samba. Mas havia uma negra moça que dançava melhor que os outros [que] faziam aquilo um pouco decorado, maquinizado (...). Ela, não. Dançava com religião. Não olhava pra lado nenhum. Vivia a dança. E era sublime. Este é um caso em que tenho pensado muitas vezes. Aquela negra me ensinou o que milhões, (...) muitos livros não me ensinaram. Ela me ensinou a felicidade (...)."
E aqui termino, também pensando muitas vezes. Especialmente neste ano do Centenário. E mais ainda, neste mês de outubro brasileiro que não sabemos como vai acabar. Só uma coisa é certa. Somos milhões acreditando e vivendo religiosamente a Esperança.
Obrigada, Tarsila e Mário, companheiros de oficina.
A beleza, a felicidade é negra!
Por Ligia Fonseca Ferreira
Confira abaixo o conteúdo dos trabalhos produzidos pelas participantes da oficina: Fernanda Maia, Gustavo Muniz e Marina Gugliotti e Marta Regina Pestana
Notas:
(1) Organizado por Gênese Andrade, Companhia das Letras.
(2) Disponível em: https://www.escritoriodearte.com/artista/tarsila-do-amaral
(3) A lição do amigo. Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, anotadas pelo destinatário. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
Ligia Fonseca Ferreira é docente de graduação e pós-graduação em Letras da Unifesp. Bacharel em Letras e Linguística pela USP. Possui doutorado pela Universidade de Paris 3 sobre vida e obra de Luiz Gama e pós-doutorado no Instituto de Estudos Brasileiros da USP, com pesquisas no campo da epistolografia brasileira e franco-brasileira.