Edição 23 - Agosto/2022 | Tema
À moda do diário
Os textos aqui reunidos foram escritos pelas alunas que participaram da oficina on-line “O guarda-roupa modernista”, ministrada por mim ao longo do mês de junho de 2022 através da Biblioteca Parque Villa-Lobos. Inicialmente, minha proposta era a produção de um tipo de texto diferente a cada encontro, a partir do tema da oficina: a relação de Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade com a moda. Mas, logo na primeira aula eu e as alunas percebemos que seria mais interessante que um único tipo de texto fosse definido, a ser trabalhado ao longo dos encontros nos exercícios de prática textual. E decidimos que seria o diário, um texto de cunho autobiográfico. Digo “as alunas” porque só mulheres se inscreveram na oficina.
A proposta foi que as participantes escrevessem um diário, privilegiando o exercício da autobiografia. Pedi que elas prestassem atenção especial à descrição de si mesmas, trabalhando a observação da própria aparência. Que usassem a aparência, o corpo vestido, como ponto de partida. Mas, além disso, que tentassem fazer com que o corpo, a aparência, as roupas servissem como unidades estruturais de seus textos. A aparência e as roupas de Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade tiveram, sem dúvida, lugar de destaque na oficina. A minha intenção, porém, era fazer com que as alunas também olhassem para si e a própria aparência numa outra perspectiva, com mais atenção. O corpo veste a roupa. Mas, não podemos nos esquecer de que do ponto de vista da roupa, é ela que veste o corpo.
Estabelecemos, assim, a dinâmica de trabalho. Levei exemplos de textos autobiográficos e pedi que as alunas lessem em aula. Criei uma pasta compartilhada e lá inseri três pastas: “Exemplos de textos”; “Material complementar”, com algumas páginas do livro Comunicação em prosa moderna, do Othon M. Garcia, sobre textos narrativos, especificamente, biografia, autobiografia e perfil; e “Textos das alunas”, onde foram inseridas as produções das participantes. Conversamos em sala de aula que era importante que todas lessem os textos de todas, assim poderíamos colocar em prática a leitura e a escrita. Ler é um grande exercício de escrita. Por outro lado, ter a oportunidade de saber a impressão que nossos textos causam nos leitores, enriquece nosso modo de ler e escrever. Essa troca é fundamental. Criei também um documento compartilhado chamado “Nosso mural”, que funcionou como um espaço de troca e comunicação.
Foi interessante perceber que a aparência de Tarsila e a relação que a artista estabeleceu com a moda surgiram nos textos produzidos ao longo da oficina. Às vezes, de maneira direta, como o carmim nos lábios; outras vezes, de modo figurativo, na forma como emergiu nos escritos a consciência da importância da aparência. Ao mesmo tempo, o fato de todas as participantes serem mulheres nos levou a conversas e reflexões sobre assuntos que atingem especialmente o universo feminino, como a rotina pesada do trabalho doméstico conjugado à vida profissional, ou o envelhecimento do corpo.
Na medida em que as alunas apresentaram seus escritos, percebemos que havia temas, imagens, palavras que apareciam em todos textos, por isso tivemos a ideia de juntá-los num pequeno e precioso livro. Memórias, lembranças familiares, o corpo, espelhos, fotografias, janelas, roupas, moda, maquiagens, doses de fina ironia, sutilezas do dia a dia e tristezas da vida compõem Querido diário, – que temos o prazer de apresentar. A escrita do diário, que é essencialmente autobiográfica, tem o substrato da confissão, mas, não se enganem. Os textos de Francilene, Raquel, Sônia e Tamira conduzem o leitor ao universo íntimo da rotina e da reflexão das mulheres, e o fazem com qualidade literária evidente.
Termino com um trecho dos diários de Sylvia Plath, um dos exemplos de textos lidos durante as aulas da oficina. É um fragmento do início da década de 1950:
E, durante o dia, mesmo quando não estou lá, os segundos saem em minúsculas tiras de tempo demarcado. E dou corda no relógio. E olho para os limpadores a desenhar um arco no vidro salpicado de gotas de chuva. Clic-clic. Clip-clip. Tic-tic. Snip-snip. E assim vai, mais e mais. Queria destruir os tiques sonoros que me assombram – sugando a vida, os sonhos, os devaneios indolentes. Tiques firmes e pontuais. Eu os odeio. Medem o pensamento, o espaço infinito, com suas engrenagens e rodas dentadas. Você consegue entender? Alguém, algures, será que você pode me compreender um pouquinho, me amar um pouquinho? Apesar de todo o meu desespero, de tantos ideais, apesar de tudo – amo a vida. Mas é duro, e tenho tanto – tanto, tanto a aprender.
Confira abaixo o conteúdo dos trabalhos produzidos pelas participantes da oficina, Francilene Monteiro da Silva, Sônia Silva e Tamira Pimenta:
Escritora, pesquisadora, figurinista e editora. É doutora em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2020), mestre em Letras também pela UFRJ e autora do livro O guarda-roupa modernista: o casal Tarsila e Oswald e a moda (Companhia das Letras, 2022).