Edição 34 - Julho/2023 | Tema
Caminhos da Linguagem
A abordagem adotada ao longo da oficina Poesia e democracia: os caminhos da linguagem fundamentou-se num binômio dialogismo bakhtiniano e retórica clássica. A ideia fundamental é de que o caráter democrático da poesia vai muito além da superficialidade a que estamos acostumados, a de identificar temáticas sociais/políticas, e se enraíza na própria linguagem e nos usos que dela se faz.
Por isso, o início dos trabalhos foi com um poema aparentemente “alienado,” Ismália, do poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens (1870-1921), mas a partir da releitura que Emicida fez do texto em seu show AmarElo. Os significados extraídos por Emicida revelam o quanto as virtualidades do texto dependem mais da leitura que fazemos dele do que das intenções originais dos poetas. Isso serviu de microcosmo no qual foi possível flagrar o processo dialógico teorizado por Mikhail Bakhtin (1895-1975), que postula a criação e recriação constante de sentidos através do diálogo incessante, da reapropriação de textos, mas de maneira responsiva.
Essa experiência dirigiu o foco para o quanto da democracia num texto, especificamente num texto poético, pode ser identificado antes nas intenções/possibilidades de legibilidade que em qualquer voluntarismo temático. Isso conduziu ao estudo de poemas modernistas (mormente de Mário de Andrade, 1893-1945) que, apesar das intenções “democráticas”, hoje estão mais afastados do universo de referências dos alunos do que o poema supostamente “alienado” de Alphonsus de Guimarães.
Toda essa dinâmica encaminhou para exercícios de produção de texto a partir de palavras “difíceis” e suas sugestões/insinuações (sonoras, onomatopeicas, associativas).
O trabalho com poemas modernistas levou à teoria modernista e ao “inimigo natural” do modernismo, que foi o parnasianismo. Ironicamente, a obsessão parnasiana com forma e correção se mostra muito mais “democrática”, já que é objetivamente acessível através do estudo. A leitura de Valentim Magalhães (1859-1903) e Olavo Bilac (1865-1918) ilustrou essa ideia.
Dos parnasianos, avançou-se retrospectivamente em direção aos românticos e, usando o prefácio de Gonçalves Dias (1823-1864) a seus Primeiros cantos (1846), refletiu-se sobre as diferenças da poesia baseada em regras e da poesia baseada em vivências pessoais e quais são mais acessíveis ou não.
A contrapartida produtiva dessas ideias foi mais escrita a partir de textos de referência.
A referência aos românticos pressupõe a comparação com os neoclássicos. Leram-se lado a lado a Lira XX da primeira parte da Marília de Dirceu (1792), de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), e a ode XL do pseudo Anacreonte, reforçando como muito do que parece originalidade é, na verdade, desconhecimento das fontes. Discutindo como durante muito tempo essas fontes eram compartilhadas e, por isso, subentendidas, lemos trechos da Dissertação terceira do árcade português Pedro Antônio Correia Garção (1724-1772).
Para encerrar o percurso, barroco (Gregório de Matos Guerra, 1636-1696) e classicismo (Luís de Camões, 1525-1580) foram vistos através das referências comuns que fazem à Ode XI de Horácio (65 aec-8ec), que codifica o topos do Carpe diem.
A ideia da oficina de fazer um percurso “regressivo”, identificando a cada passo os referenciais intelectuais, imagéticos e formais a que escritores estavam respondendo (sempre balizados por determinados limites retóricos) teve como objetivo colocar em ação o próprio processo de diálogo que explicita o quanto a possibilidade democrática de acesso está menos na suposta facilidade ou no suposto engajamento de um texto poético e mais na consciência do leitor de qual o mecanismo a partir do qual ele se ordena. Da mesma maneira, a intenção “elitista” ou “democrática” de um autor está muito mais vinculada à clareza e acessibilidade de suas fontes do que ao conteúdo propriamente dito.
Nesse sentido que a produção final foi balizada pelos critérios clássicos de invenção poética que se orientam pela reescrita de modelos considerados legítimos. Os participantes foram orientados a trabalhar com histórias que já fossem suas conhecidas e criassem novas versões.
Fernando Morato é doutor em Estudos do Mundo Lusófono pela The Ohio State University, mestre e graduado em Letras e Literatura pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor de Literatura há mais de 25 anos, pesquisa e publica sobre a literatura neoclássica (Obras poéticas de Silva Alvarenga, 2005; A Doença, de Domingos Caldas Barbosa, 2018) e mantém desde 2020 um canal de YouTube dedicado à poesia (Preso na Língua.)