Edição 31 - Abril/2023 | Tema

Canção-assentamento

Fernando Siniscalchi

A canção é um discurso poético primordial em que música e palavra estão intrínseca e dinamicamente amalgamadas para construir uma narrativa de muitas camadas de sentido. Essa qualidade polissêmica faz da canção um espaço de risco e trânsito; uma força agregadora de gestos, imagens e metáforas individuais, coletivas, contemporâneas ou atemporais. Já a vocalidade é gesto humano atávico: a voz é elemento fundante da nossa experiência no mundo, tanto do ponto de vista sonoro (e a capacidade de soar) quanto da articulação da linguagem. A canção tem na voz humana o suporte do discurso; a voz, por sua vez, é território em que habitam memórias, afetos e singularidades, que são precipitados de modo muito especial no dizer-cantar da canção.

Assim, o objetivo da oficina “Canção-Assentamento: terra, território e terreiro” foi criar uma composição coletiva por meio de sobreposição de sons registrados pelas participantes, a partir das referências, provocações e reflexões despertadas ao longo dos encontros. Os materiais sonoros, todos gravados pelas participantes, incluem a leitura de textos autorais ou de outros autores, e que de algum modo representem sua relação com a terra; sons externos (da cidade, da natureza, etc.); e sons produzidos com a voz ou com o corpo.

Para as gravações vocalizadas, foi feita a seguinte sugestão de procedimento: 

- ouvir algumas músicas da playlist do projeto [ Youtube: https://youtube.com/playlist?list=PLK8yrq6tR6p0VLL-FjVKGGuurDeXgY6p1&feature=shares ] [Spotify: https://open.spotify.com/playlist/4tjduyxcu5eF9EGw2il1w6?si=7b899b53d88444c2 ], de modo a alimentar as sensibilidades com sons e canções que conversam com as temáticas propostas na oficina;

- depois de ouvir, ficar de olhos fechados, respirar fundo e não pensar muito;

- “imitar”, com a voz e/ou com o corpo, sons de modo bem simples, desimportantes: sons da natureza (pássaros, rios, chuvas, ventos, insetos etc.) e sons da cidade (ruídos de carros, pessoas falando indistintamente, crianças brincando etc.);

- cantarolar ou entoar melodias, com ou sem letra;

- também fazer esse mesmo procedimento antes de gravar a leitura do texto escolhido.

De posse das gravações enviadas, o procedimento composicional foi o de recortar e “empilhar”, em programa de edição de música, os vários trechos, formando camadas sobrepostas de texturas, melodias e pulsos. Uma polifonia sonora que desenha uma narrativa não linear, um discurso mais espesso que assenta simultaneidades, relações multidirecionais, rasuras, frestas, espaços.

A composição coletiva “canção-assentamento” traz as vozes das participantes (em ordem alfabética) Francilene Monteiro da Silva, Karina Hide Sugiyama Idehara, Karlene Bianca de Oliveira, Maria Nilda Rodrigues dos Santos e Sônia Regina da Silva. Edição, montagem e mixagem realizadas por mim em fevereiro/março, durante oficina que ofertei para a Biblioteca Parque Villa-Lobos, dentro do projeto Literatura Brasileira no XXI, parceria da SP Leituras com a UNIFESP.

 

https://lbxxi.org.br/arquivos/publicacoes-1123-cancao-assentamentocomposicaocoletivajulianaamaral.mp3

 

 

Juliana Amaral (1973) é cantora, compositora, artista gráfica, professora e escritora. Tem cinco discos autorais lançados e participou de inúmeros espetáculos, CDs e DVDs de artistas de sua geração. Recém-formada em Letras pela FFLCH-USP, tem dois livros publicados. Seu trabalho artístico destaca-se por um refinado acabamento técnico, cênico e musical que lhe rendeu a admiração de público, músicos e crítica especializada, numa carreira longeva que completa 30 anos em 2023.

Leia também

A Literatura Negra como herança de um Brasil Crioulo

 Ao pensarmos na formação da literatura nacional e seus marcadores raciais, na maioria das vezes surgem algumas indagações em torno das temáticas que envolvem escritos produzidos por autores negros, além de uma tensão de como classificar essas produções. Resgatando o conceito de Cuti Silv...

Leia Mais!
Amazônias poéticas: culturas, heterogeneidades, hibridismos

Em estudo primoroso, Ana Pizarro (2012) detecta que os escritos sobre Amazônia possuem uma especificidade. A grandiosidade da floresta e a dimensão fluvial saltam aos olhos de quem se defronta com ela. O rio é espaço, moradia, elo entre comunidades. Por ser uma fonte de nutrição para humanos ...

Leia Mais!
Mundos possíveis da ficção sertaneja

Convém reconhecer, desde logo, a imprecisão do título desta oficina. A categoria "prosa sertaneja" não corresponde a uma noção evidente, estanque ou autoexplicativa, sendo necessário conferir-lhe precisão e consistência. No caso, a prosa analisada acomoda textos díspares, escritos em circ...

Leia Mais!
A moda caipira encanta a nova metrópole

Na oficina Relações entre música sertaneja e canção popular urbana, trabalhamos com o cancioneiro sertanejo, observando o diálogo das canções com as transformações da cidade de São Paulo, procurando compreender, a partir do estudo das composições, os processos de assimilação da cultu...

Leia Mais!
Poesia brasileira no XXI: vozes, letras e suportes

Escrever sobre a poesia do século XXI é uma tentação de muitas faces. A face juvenil reuniria seus amigos identificados pela vida e arte. Nós os representantes da geração, compartilhando livros, autores, referenciais e estilos. Tudo tão bonito a ponto de provocar inveja a quem não foi conv...

Leia Mais!
Entre canto e fala: o fogo

Qual o lugar da voz na literatura do século XXI? Qual o papel da performance nos dias de hoje, ela que outrora foi o meio difusor principal da produção poética? Num tempo em que a expressão emanava sobretudo do corpo que se pronuncia diante da audiência. Tempo em que a palavra se apresentava ...

Leia Mais!