Edição 05 - Fevereiro/2021 | Tema
Carnaval em tempo de pandemia
Recebi com surpresa o convite gracioso da Biblioteca Villa-Lobos para ministrar esta oficina em homenagem ao Carnaval, às portas de um fevereiro em que não haverá Carnaval. Como começar 2021 sem realizar, por meio da folia carnavalesca, a catarse de um ano de tantas provações? Dadas as inquestionavelmente necessárias medidas sanitárias que buscam conter a epidemia da COVID, responsáveis pelo adiamento do próximo Carnaval, carecia pensar num percurso que buscasse sublimar a catarse carnavalesca, vivendo-a no plano da imaginação. Daí a presença da literatura, histórica remediadora de nossos males, passaporte a diversos tempos e espaços – dos que existiram empiricamente àqueles que foram inventados ao longo dos séculos. E, depois dela, do cinema, da música...
Na ausência empírica do festejo, fizemos uma viagem pelos carnavais de outrora, a partir de um conjunto de manifestações culturais a eles relacionadas. Escolhemos como recorte geográfico o Brasil do Império à Quarta República, porém, procuramos estender nossos olhos também à história pregressa do carnaval, dos popularíssimos festejos ocorridos na Europa da Idade Média – a mera tolerância da Igreja àqueles dias de inversão e riso que antecediam a reclusão da Quaresma – à antiguidade grega, encontrando liames entre o carnaval e os desvarios báquicos eternizados pelos trágicos.
Já no Brasil monárquico e escravocrata e, em seguida, submetido a sucessivas ditaduras republicanas, o Carnaval forja historicamente palcos de luta: dos cucumbis de negros trajados de índios que clamavam pela liberdade em fevereiro de 1888, virando do avesso as definições de nacionalidade forjadas por José de Alencar; ao erotismo que emergia entre jovens de ambos os sexos que se incumbiam de pespegar limões de cheiro uns nos outros, no moralista Rio de Janeiro dos anos de 1870; às críticas sociais encenadas nos carros das ricas Sociedades Carnavalescas dos anos de 1900; e, enfim, à emergência das Escolas de Samba, oriundas das camadas espoliadas da sociedade, agora protagonistas.
Juntos, vivemos, ao longo desta Oficina, os Carnavais cantados ou sonhados por gente como Arthur Azevedo, João do Rio, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Moraes. A oficina apresentava como missão aos participantes a escrita de crônicas – gênero textual cujo objetivo é discorrer sobre os assuntos do dia, sem deixar de lado seu caráter de invenção –, tendo como fontes de inspiração as obras lidas e discutidas na oficina. É o resultado desta missão que as leitoras e os leitores têm, agora, diante de seus olhos.
Escolhi como percurso abrir e fechar esta coletânea com beijos. Primeiro, os saídos da caneta de Rivaldo Soares. Seu (sortudo) eu-narrativo conseguiu realizar cabalmente a catarse do ano de 2019, preparando-se para os percalços deste ano. “Beija-homem” é consubstancial ao carnaval, tanto que se metamorfoseia na caixa de som dos bloquinhos onde ele brinca.
“Beija-homem” mal sabia dos tempos lúgubres que se avizinhavam. Quem os anuncia é Raiany Gremes, cuja personagem é flagrada em plena segunda-feira de um carnaval fora de época, inserida no turbilhão num só tempo físico e psicológico, numa Uruguaiana que faz questão de brincar os festejos de Momo mesmo em meio à recém-declarada pandemia da COVID. A ela se segue Alessandra Testa, cujo carnaval bebe de Drummond – aludindo aos mascaramentos nossos cotidianos. Em “Carnavais, malandros e heróis”, Anderson Pimentel, historiador e reflexivo como os cronistas de princípios do XX, toma para análise a dicotomia entre os espaços da rua e da casa, discutida por Roberto Damatta. A partir deste entrelugar, debruça-se, por fim, em Manuel Bandeira, no qual as cores do Carnaval empírico dissolvem-se, todas, num amargo carnaval subjetivo.
Os próximos três textos partem das rememorações dos Carnavais de outrora – uns mais alegres que outros. Raiany Gremes sorve o mesmo amargor que o Bandeira cantado por Anderson, ao narrar um assédio vivido durante um festejo carnavalesco – o título da crônica, “Século XXI”, define de modo lúgubre os nossos tempos: “Poucas sobrevivem à adolescência” – seu lamento mal esconde o seu grito de liberdade. Maria Julia Andrade viaja a um mundo bem mais pregresso e – ao menos no âmbito narrativo – cálido: o carnaval de 1940, quando sua avó conheceu o seu avô. Já Leila Abe faz um passeio transcontinental ao longo de décadas carnavalescas fruídas com prazer.
Por fim, a carnalidade carnavalesca – etimologicamente, “carnaval” é oriundo do latim medieval “carneleváre”, aludindo à véspera da Quarta-Feira de Cinzas, quando tem início a abstinência de carne exigida na Quaresma – é tomada literalmente por Suelen Santana Silva, cuja dupla (tal e qual Tico e Teco, Mickey e Minnie, Ana Maria Braga e Louro José – passemos aqui a iconoclastia!) goza o carnaval na cama. E, enfim, como fecho desta coletânea, caminhamos pelo “Carnaval” de Anderson Pimentel, um passeio no qual os carnavais de sua meninice são atravessados pelas crônicas, filmes, canções, poemas e contos que lemos ao longo de quatro riquíssimos encontros.
Que a leitora e o leitor vivam esses Carnavais que agora lhes apresentamos, enquanto não podemos experimentar a Festa em comunidade, roubando pelas ruas os beijos aos quais Anderson alude em seu libelo. E que possamos logo, saudáveis, vacinados, vivos, (re)viver na pele as deliciosas folias carnavalescas.
Por Danielle Crepaldi Carvalho
Veja, a seguir, uma seleção de textos produzidos como resultado da oficina "História e escrita de crônicas: um percurso pelo Carnaval a partir da produção cultural realizada no Brasil”, ministrada em dezembro pela professora Danielle Crepaldi Carvalho, dentro da programação da Biblioteca Parque Villa-Lobos:
Anderson Pimentel (1) - Carnavais, malandros e heróis
Anderson Pimentel (2) - Carnaval
Maria Julia Andrade - O Carnaval da minha vó
Raiany P. Gremes (1) - Segunda-feira rescaldada
Raiany P. Gremes (2) - Século XXI
Suelen Santana Silva - A máscara desse Carnaval está diferente