Edição 35 - Agosto/2023 | Tema

Contra o sumiço do texto e do leitor

Ilustração: Fernando Siniscalchi

A oficina Conversando sobre textos: literatura, escola e exercício da democracia, ocorrida nos dias 7, 9, 14 e 16 de junho, propôs-se a repensar o ensino de literatura tomando, por princípio, a adoção de práticas capazes de focalizar a figura do leitor. Muitas vezes, a sala de aula é palco de um duplo sumiço: de um lado, desaparece o texto, sufocado por discursos críticos a seu respeito; de outro, some o leitor, sufocado, por sua vez, por questões pré-estabelecidas, seja pelo professor, seja pelo livro didático. Num cenário em que o sujeito e o objeto estão desaparecidos, pergunta-se: quem conversa sobre o quê? Questão vital para a saúde das democracias, a qualificação do debate na sociedade como um todo – e na escola em particular – pareceu-nos um caminho a trilhar nos quatro encontros que constituíram a oficina.

Nos dois primeiros dias, tratamos de revisitar autores que, em suas obras, nos dão pistas acerca deste diálogo difícil que envolve a literatura na escola. Autores de hoje, como Rodrigo Ciríaco, e de ontem, como Pedro Nava e Graciliano Ramos, forneceram subsídios para que compreendêssemos melhor o desafio a partir das obras Te Pego lá Fora, Chão de Ferro e Infância. E pusemos, enfim, a mão na massa: era hora dar a partida nos diários de leitura, valendo-nos, para isso, de dois importantes poetas brasileiros contemporâneos. Começamos por Da Arte das Armadilhas, de Ana Martins Marques, cuja leitura deu pano para manga, seja na conversa sobre o livro, seja nos diários. Depois, foi a vez de Trovar Claro, de Paulo Henriques Britto, que inspirou, igualmente, reflexões instigantes.

Nos dois últimos encontros, tomamos a prosa como objeto de discussão. Selecionamos dois contos de Machado de Assis reescritos por autores contemporâneos: começamos por Bruno Zeni e sua releitura de A Cartomante; depois, conversamos sobre a releitura bem-humorada de Teoria do Medalhão, de Mariana Veríssimo, com direito a um insólito encontro entre Machado de Assis e Paris Hilton. Ambas as recriações estão publicadas em Um Homem Célebre: Machado Recriado e renderam boas reflexões nos encontros e nos diários de leitura. A ideia, a partir destes contos, era também propiciar um debate sobre a escrita criativa em sala de aula, na medida em que as escolhas narrativas de Zeni e Veríssimo convidam-nos a indagar o porquê de certas substituições, adições, supressões, refocalizações. Com isso, a perspectiva do escritor, de certo modo, fica aqui mais em evidência. E, de quebra, o distanciamento um tanto reverencial, potencialmente castrador, diante de um autor consagrado como Machado de Assis, quebra-se aqui por conta da manipulação do texto de origem, deliberadamente atualizado, subvertido, provocado – recriado, enfim.

Ao final dos encontros, fizemos uma comparação entre os diferentes modelos de diário de leitura surgidos nos quatro dias: alguns, mais abertos; outros, mais rígidos; alguns, mais propensos ao registro casual da leitura em progresso, com seus cansaços, euforias, hesitações – outros, tomando a leitura como um evento da memória, ainda que recente, mas já com a poeira das emoções menos viva, embora também presente. Em todos eles, está visível a presença do leitor e, até mesmo, em algum nível, a do autor. Será que tais figuras têm direito à vez e voz no espaço da sala de aula? Oxalá a conversa sobre os textos literários, no âmbito escolar, possa ser mais viva, produtiva, democrática. Foi para esta direção, ao menos, que a oficina pretendeu apontar, a partir de práticas e discussões como as que resumimos neste texto.

Por Júlio Vale

Julio Vale é mestre (2005) e doutor (2011) em Teoria e História Literária pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da UNICAMP. Estudou a obra do memorialista Pedro Nava, debruçando-se sobre as representações da escola ali presentes. Atualmente, é professor adjunto da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da UNIFESP, onde pesquisa questões relacionadas ao ensino de literatura e ministra disciplinas sobre o tema. Coordena o projeto “Pontes: Língua e Literatura, Universidade e Escola” e integra, no período 2022-2024, a coordenação de área do subprojeto Letras do PIBID-UNIFESP (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência). Foto: Cristiane Zaniratto.

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