Edição 06 - Março/2021 | Tema

Depois do princípio era o verso

Ilustração: Fernando Siniscalchi

Pode não parecer, mas a poesia é uma das tecnologias mais antigas do homo sapiens. Desde os tempos antediluvianos, quando ainda não se imaginava nenhuma escrita baseada em logogramas, hieróglifos, ideogramas ou alfabetos. Não havia sequer as condições materiais de hoje, que garantem o registro do nascimento de alguém ou a receita de um preparo com ervas comestíveis. Não havia, muito menos, um estabelecimento de ensino e aprendizagem centrado na escrita. 

Pegar lápis e papel (ambos itens industrializados) para anotar como se costura uma camisa, por exemplo, é um gesto normal para boa parte das pessoas do século XXI, mas nem sempre foi assim. Cerca de um quinto da humanidade, ainda hoje, vive alijada, para o mal e para o bem, dos avanços científico-informacionais, colhendo os frutos de florestas ameaçadas, arando as terras com as próprias mãos ou preparando mezinhas onde nenhuma vacina jamais chegou. 

Essas comunidades constituídas de bilhões de almas, espalhadas por todos os continentes, têm muito a nos ensinar sobre algo constitutivo da humanidade: a memória. Como foi e continua a ser possível que certos conhecimentos atravessassem as gerações, prescindindo de bibliotecas ou bancos de dados digitais? É que as pessoas aprenderam a falar, puderam domar os sons e grunhidos percutidos por suas bocas e gargantas. 

E quem fala já produz ritmo e toada, ainda que assimétricos. Quem ouve uma informação útil, que explica como acender o fogo, por exemplo, vai dividir a boa nova com alguém, não precisa guardar para si. Se esse dado for cantado em verso, mais fácil ser replicado por terceiros, mesmo que com alterações ou adulterações. A poesia tornou possível a conexão e a reprodução das memórias.

Os professores de química, umas das ciências centrais da modernidade iluminista, sabem que fórmulas complexas podem ser lembradas com musiquinhas verbais. É assim que, durante uma prova de vestibular, muitos alunos acionam essa ancestral tecnologia chamada poesia oral para resolver problemas da vida contemporânea.  

Essa função prática da poesia costuma se desenvolver na convivência comunitária, assim como se aprende a andar e a cozinhar. É e foi através desse tipo de poesia vocalizada que lendas e ensinamentos foram e são armazenados através dos tempos. Mas a arte poética, num passado bem mais recente, a partir da institucionalização da escrita, também virou um espaço de beleza construtiva, de primazia da linguagem verbal, de técnica ensinada formalmente por mestres remunerados para tanto. Também por isso, a poesia foi usada como traço de distinção social. Nobres leem poesia em volumes com fios de outro. Plebeus improvisam versos ao redor da fogueira.

A poesia oral existe há algumas dezenas de milhares de anos, e só precisa de uma comunidade pulsante para florescer. A poesia escrita tem apenas alguns milhares, mas só foi popularizada há bem pouco tempo, graças a democratização da escola, da imprensa e de certos instrumentos materiais (caneta e caderno, por exemplo). 

Estima-se que na Inglaterra de meados do século XIX, então a principal potência imperialista do planeta, metade da população não sabia ler nem escrever. No Brasil desse período, com uma maioria pauperizada ou escravizada, portanto versejando mais na oralidade que na literatura, quantos viventes terão lido Gonçalves Dias? Apenas uma ilha de letrados, sem dúvida. 

Hoje, o equilíbrio é maior, e tenho que a poesia oral faz bem para a literária e vice e versa, como confirmam as obras de Patativa do Assaré e de Ferreira Gullar. Seguimos lendo e ouvindo poemas para aprender a rezar, caçar ou decorar nomes de capitais. Sobretudo lemos poemas em páginas para fruir sua forma, sua abordagem de coisas óbvias, como amor e morte, de modo absolutamente inusitado, intenso e bonito. 

O vinte e um de março marca o Dia Mundial da Poesia, que também significa todas as maneiras de se vivenciar poesia em todos os tempos e lugares. Evidente que não há livro, curso, oficina ou especialista que dê conta de um universo com tamanha complexidade e extensão. Oficinas como O poeta é um fazedor: ritmos antigos e versos contemporâneos, ofertada por Érico Nogueira para o projeto Literatura Brasileira no XXI, dão conta apenas em parte do fenômeno, ainda que se aprofundem em muitos de seus aspectos. 

Enquanto incansável pesquisador e experimentador de ritmos poéticos escritos, seus trabalhos teóricos e poéticos, assim como seus cursos, compartilham o incrível acervo de ritmos em latim e português cultos. Não é tudo que a poesia nos permite, mas é muitíssimo para quem quer se tornar um profissional do verso escrito. 

Por Pedro Marques

Veja, a seguir, o texto produzido como resultado da oficina "O poeta é um fazedor: ritmos e versos contemporâneos", ministrada em janeiro pelo professor Érico Nogueira, dentro da programação da Biblioteca de São Paulo

Pedro Marques é poeta, compositor e crítico. Professor de Literatura Brasileira da Unifesp. Com Pablo Simpson e Caio Gagliardi, organizou as revistas de poesia Salamandra, Camaleoa e Lagartixa. Com Gagliardi, editou o site Crítica & Companhia. Editor do site Poesia à Mão. Escreveu, entre outros, "Em Cena com o Absurdo" (1998), "Olhos nos Olhos" (poesia, 2008), "Clusters (poesia, 2010) e "Cena Absurdo" (poesia, 2016).

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