Edição 45 - Junho/2024 | Tema

Entre canto e fala: o fogo

Ilustração: Fernando Siniscalchi

Qual o lugar da voz na literatura do século XXI? Qual o papel da performance nos dias de hoje, ela que outrora foi o meio difusor principal da produção poética? Num tempo em que a expressão emanava sobretudo do corpo que se pronuncia diante da audiência. Tempo em que a palavra se apresentava imbricada com outros modos corporais de expressão, como a dança, a música e o teatro. Qual o espaço possível para a poesia vocalizada? A performance poética, velho recurso de tempos imemoriais, ainda tem alguma contribuição para a contemporaneidade?

Agamben (2018), no seu ensaio O fogo e o relato, destaca uma anedota judaica tirada do livro Le Grandi corrente della mistica hebraica, de Gershom Scholem (1993), sobre os saberes relacionados a uma prática ritual através de diferentes gerações:

Quando Baal Schem, fundador do hassidismo, tinha uma tarefa difícil pela frente, ia a um certo lugar no bosque, acendia um fogo, fazia uma prece, e o que ele queria se realizava. Quando uma geração depois, o Maguid de Mesritsch viu-se diante do mesmo problema, foi ao mesmo lugar no bosque e disse: “Já não sabemos acender o fogo, mas podemos proferir as preces, e tudo aconteceu segundo seus desejos”. Passada mais uma geração, o Rabi Moshe Leib de Sassov viu-se na mesma situação, foi ao bosque e disse: “Já não sabemos acender o fogo, nem sabemos as preces, mas conhecemos o local no bosque, e isso dever ser suficiente”; e, de fato, foi suficiente. Mas, passada outra geração, o Rabi Israel de Rijn, precisando enfrentar a mesma dificuldade, ficou em seu palácio, sentado em sua poltrona dourada, e disse: Já não sabemos acender o fogo, não somos capazes de reclamar as preces, nem conhecemos o local do bosque, mas podemos narrar a história de tudo isso”. E, mais uma vez, isso foi suficiente.

Para o filosofo italiano, trata-se de uma alegoria da função literária, porque na medida em que a humanidade se afasta do mito e vai perdendo a lembrança dos rituais primitivos, resta apenas contar “a história de tudo isso”, a qual denomina de memória da perda do fogo, cujo relato nada mais é do que literatura. No entanto, não se trata aqui de conceber a função literária como um estágio mais avançado da cultura, fruto de um amadurecimento do homem diante do mito e que culmina com o seu afastamento da religião – a secularização, como sugere a visão de Adorno sobre esta mesma história –, mas compreender que a condição de existência da literatura é justamente o seu papel de relatar a memória do que foi perdido. Partindo da máxima: “[…] onde há relato, o fogo se apagou; onde há mistério, não pode haver história […]”, Agamben (p. 34) afirma que o relato (a história), enquanto consequência do desaparecimento do Fogo (o mistério), deve ser ao mesmo tempo testemunha de sua ausência. “E isso deve ser suficiente”, precisa ser suficiente, inclusive, para manter o edifício do fazer literário que, em si mesmo, é todo memória da perda. O autor tateia uma resposta apoiando-se no já verificado elo genético entre paganismo e romance antigo, desde Apuleio, para apontar uma sobrevivente e necessária aura de mistério na literatura moderna, já desvencilhada de qualquer conotação religiosa. No seu dizer, a língua é a sonda investigativa lançada na penumbra do mistério perdido e que retorna com as chagas feridas causadas pelo esquecimento. Caberia aos escritores identificarem os “estilhaços de luz negra que provêm do mistério perdido” (p. 33), através do exame dessas chagas que nada mais são que os próprios gêneros literários: “[…] o modo como a língua chora sua relação perdida com o fogo” (p. 34). A imagem poética de Dante, do tremor da mão do artista no hábito da arte, segundo Agamben, é imagem mais adequada dessa missão inglória.

O filósofo e ensaísta Byung-Chul Han compartilha da visão adorniana de um progressivo desencantamento do mundo pela perda do fogo, do lugar e da prece e acrescenta a emergência de um outro problema crucial: a perda da própria habilidade de narrar. Estaríamos vivendo numa época pós-narrativa, onde toda alusão à narratividade nada mais é que sintoma da ausência de narrativas vinculantes, aquelas capazes de transformar “[…] o ser-no-mundo em um estar-em-casa, dando à vida significado, apoio e orientação” (Han, p. 9). De fato, as grandes narrativas da religião e da política, bem como da ciência, vêm perdendo força e seus fragmentos rolam dispersos no turbilhão da maquinaria do capitalismo:

As narrativas criam uma comunidade. O storytelling, por sua vez, só cria uma community na forma de mercadoria. A community é formada por consumidores. Nenhum storytelling seria capaz de reacender a fogueira em torno da qual as pessoas se reúnem e narram histórias umas às outras. A fogueira já foi extinta faz tempo. Ela está sendo substituída pela tela digital que isola as pessoas na forma de consumidores. Consumidores são solitários. Não formam uma comunidade. Os “stories” das plataformas sociais não são capazes de eliminar o vácuo narrativo. Eles nada mais são do que promoções pornográficas ou anúncios. Postar, curtir e compartilhar como práticas consumistas intensificam a crise narrativa. (HAN, 2023, p. 13)

Em Fedro, diálogo de Platão no qual o amor e a retórica são os assuntos, a certa altura Sócrates dispõe-se a falar sobre a conveniência ou não da arte escrever. Para isso, utiliza-se de um suposto mito egípcio relacionado ao deus Theuth (ou Thoth), que se dirige ao faraó Thamous (identificado ao deus Ámmon) para apresentar suas novas descobertas e invenções, tais como o gamão, os dados, os números e as letras. Sobre esta última, o deus inventor afirma ter encontrado um verdadeiro remédio (Phármakon), mas é rebatido por Thamous, que comenta:

Ó tecnicíssimo Theuth […] tu, sendo o pai das letras, por afeição disseste o contrário que elas podem. Pois isto, nos que aprenderam, esquecimento em suas almas produzirá com o não exercício da memória, porque, na escrita confiando, é de fora, por alheias impressões e não por eles mesmos, que se recordam; assim, não para a memória, mas para a recordação achaste um medicamento. E da sabedoria, aos teus aprendizes transmites uma aparência, não a verdade. Pois, com a tua ajuda, muito informados sem ensino, muito avisados parecerão, quando na maioria dos casos são desavisados, e difíceis de conviver, tornados aparentes sábios em vez de sábios. (PLATÃO, p. 193).

De lado as questões platônicas de fundo como o alcance da verdade e a crítica da mimese, mas detendo-se no fio da narrativa, nota-se a preocupação de Sócrates com o fato de que a confiança no registro material faria apagar a memória dos homens e fazê-los acreditar que as palavras escritas são mais que um meio para os que já sabem poderem relembrar. Esse argumento faz parte do esforço platônico de combater a tradição dos discursos escritos que vigorava em sua época, cujos autores célebres tornavam-se modelos de imitação. Aqui, como em Agamben, circula-se em torno da ideia da perda de algo abstrato relacionado à ancestralidade ou a conquistas do espírito humano, ao lado da qual a língua (a narrativa, a escrita) aparece ao mesmo tempo como consequência dessa crise e recurso tecnológico para administrá-la.

No entanto, os “tecnicíssimos” deuses atuais da invenção apresentam agora a mais recente das inovações: as máquinas de texto automático, intituladas de inteligências artificiais (IA), que mesmo num estágio inicial de relativa mediocridade, já são capazes de substituir o humano numa série de atividades de elaboração mental. Estamos em contato com a produção desses autômatos em vários lugares, especialmente nas redes sociais, através de textos jornalísticos, videodocumentários e outros textos técnicos. Por vezes, somos surpreendidos no vale da estranheza do comportamento quase humano de um assistente virtual. É esperado que, em breve tempo, a evolução de seus modelos as torne mais capazes de emular a subjetividade humana e eficientes no processo de parafrasear a cultura. Assim, os seres humanos poderão se libertar de parte do cansativo trabalho de produção intelectual.

Por isso, a produção textual está em xeque. A suposta autoridade e aparência de verdade do texto escrito, conforme os receios de Platão, estão envoltas numa onda de desconfiança. A ferramenta libertadora dos grilhões do trabalho intelectual humano, capaz de expandir a mente nos horizontes do espaço e do tempo, pode ser também a causadora de uma possível atrofia da capacidade cerebral, conforme a crítica do deus egípcio.

Diante da inquietante realidade, a oficina “Entre canto e fala - música e poesia ao sul do Brasil” explorou as possibilidades da criação literária junto da matéria fônica da língua, aproximando-se da linguagem corporal e acolhendo sua opacidade discursiva, enquanto mistério que desafia os estudos da significação. Em busca de respostas práticas para as questões colocadas no início desse texto, buscou-se refletir sobre as relações entre música e poesia através da vocalidade na cultura popular do sul do Brasil, especialmente do folclore catarinense: o boi de mamão, a ratoeira, o pão por Deus e as lendas populares recolhidas e publicadas pelo pesquisador Franklin Cascaes. A partir do exame desses exemplos, entre outros da antiguidade até o presente, identificamos práticas e técnicas recorrentes que serviram de base para exercícios de produção textual que consideram a riqueza plástica da voz humana como recurso expressivo em suas nuances semânticas e fonéticas.

Por Silvio Mansani

 

Referências bibliográficas:

AGAMBEN, Giorgio. O fogo e o relato: Ensaios sobre criação, escrita, arte e livros. Tradução Andrea Santurbano e Patrícia Peterle. São Paulo: Boitempo, 2018.

CASCAES, Franklin. O fantástico na ilha de Santa Catarina. Florianópolis: Ed. Da UFSC, 2015.

HAN, Byung-Chul. A crise da narração. Tradução de Daniel Guilhermino Tradução Petrópolis: Vozes, 2023.

PLATÃO. Fedro. Tradução de José Cavalcante de Souza - São Paulo: Editora 34, 2016.

Silvio Mansani é músico, compositor e professor da rede estadual de educação em Santa Catarina. Licenciado e mestre em música pela UDESC-SC e doutorando pelo programa de pós-graduação em música da mesma instituição. Como cantor e compositor, lançou os álbuns Boa pessoa (Tratore, 2010), Outras pessoas (Tratore, 2016) e No dorso do Rinoceronte (Tratore, 2007), voltado ao público infantil, em parceria com Emilio Pagotto. 

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