Publicações | Criação Literária

Escrever a vida: a escrita de mulheres

Fernando Siniscalchi

Escritoras frequentemente escrevem a partir de suas vivências, o que não significa que o que se escreve é igual ao que se vive. Como se dá essa passagem da vida para a literatura? Que operações textuais são apresentadas e testadas por essas mulheres ao escreverem suas vidas? Como as questões de gênero afetam a escrita da vida? Como essa escrita se modifica em diferentes tipos de texto, dos diários ou cartas às narrativas autoficcionais? Que cruzamentos podem se dar entre texto e imagem ao escrever a vida? Essas são algumas das perguntas que serviram de ponto de partida para a oficina, para que pudéssemos explorar diferentes modos de escrever a vida na escrita de mulheres. 

O objetivo principal foi que es participantes entrassem em contato com a literatura contemporânea de mulheres através de discussões teóricas, em torno de questões relacionadas ao gênero, à memória e à intimidade, e práticas de escrita que colocaram em funcionamento métodos, operações e estratégias literárias das escritoras abordadas. Assim, esperava-se unir reflexão e prática sobre o que significa escrever a vida, a partir das leituras e das discussões, bem como dos exercícios de escrita propostos a partir delas. 

Na primeira aula, de apresentação, foram lidas citações de escritoras - Audre Lorde, Clarice Lispector, Marguerite Duras e Natalia Ginzburg - que serviram de inspiração para começarmos a pensar as relações possíveis entre escrita e vida. Propus uma dinâmica, com es participantes divides em salas do Zoom, para que as citações fossem primeiro discutidas em pequenos grupos e depois entre todes. Entre outras questões, foi destacado nessas leituras: o modo como escrever tem a ver com estar atenta à vida que vive em nós e ao redor de nós; como a gente escreve em diferentes estados, dependendo da nossa condição em dado momento da vida; como a escrita é também parte de uma vida mais ampla, compartilhada com muitos outros seres, para além de nós; como escrever não é apenas refletir a vida tal como ela é, mas também estabelecer as condições para o que ela poderia ser, no futuro.

A partir da segunda aula, começamos o cruzamento entre as leituras, as discussões e a escrita de cada participante. A cada aula, propus um exercício relacionado com as leituras, no sentido de uma apropriação das operações, métodos e estratégias dos textos apresentados, mas sobretudo, mais amplamente, no sentido de uma compreensão do que está em jogo neles e para essas autoras em termos de uma elaboração de questões vitais, como, por exemplo, no caso das narrativas autoficcionais, de eventos traumáticos dos quais é preciso tomar alguma distância para poder escrever sobre eles. 

Na primeira aula, então, a partir da leitura das narrativas de Carla Maliandi, Guadalupe Nettel, Laura Alcoba e Tatiana Salem Levy, foi proposto o seguinte exercício: – Escolham uma lembrança marcante de sua de infância em que haja uma outra pessoa envolvida com quem você tem uma relação forte; – Contem essa lembrança do ponto de vista dessa outra pessoa, como se ela estivesse falando com você. 

Foram, no total, três exercícios de escrita, sendo que um aspecto importante deles é que se desdobravam um do outro, dando continuidade, a cada aula, a um trabalho de exploração da memória e da escrita. Desse modo, no segundo deles, a partir da leitura de fragmentos de cartas e diários, em particular de Cartas a uma negra, de Françoise Ega, foi proposto o seguinte exercício: – Inspiradxs nas cartas de Françoise Ega a Carolina Maria de Jesus, escolham uma das autoras deste bloco (Alejandra Pizarnik, Ana Cristina Cesar, Carolina Maria de Jesus, Clarice Lispector, Françoise Ega, Marta Minujín, Virginia Woolf) e pensem para quem vocês gostariam de escrever; – Reescrevam a lembrança que escolheram para o exercício da aula passada na forma de carta para uma delas.

Finalmente, no terceiro, desdobrando a lembrança uma vez mais, e a partir das discussões em torno do cruzamento entre texto e imagem, nas escritoras-artistas que faziam parte das leituras da terceira aula (Aline Motta, Laura Erber, Leila Danziger, Sophie Calle, Veronica Gerber Bicecci), foi proposto o seguinte exercício: – Escolham uma foto de infância, relacionada à memória que vem sendo escrita na oficina. – Reescrevam a lembrança, fazendo alusão a essa imagem.

Gostaria de terminar apontando que foi importante para mim fazer o recorte da oficina relacionado com a escrita de mulheres, para deixar em evidência que elas escrevem a vida como uma forma de ampliação da experiência própria e do olhar sobre o mundo, de uma maneira comprometida com o trabalho da memória, o que produz uma escrita de risco em que escrever sobre si é também se abrir à possibilidade de sair de si, evidenciando e encarando medos e desejos. Acredito que isso foi transmitido a quem participou e ficou registrado nos textos escritos.

Por Paloma Vidal

Confira os trabalhos realizados pelos participantes da oficina:

Francilene Monteiro da Silva

Mariane Tavares

Nirlei Maria Oliveira

Sonia Regina da Silva


Paloma Vidal (Buenos Aires, 1975) é escritora e ensina Teoria Literária na Universidade Federal de São Paulo. Publicou romances, peças, livros de contos e de poesia, entre os quais  Algum lugar (2009), Mar azul (2012), Três peças (2014) eWyominge Menini(2018). Seus livros mais recentes são os romances Pré-história (2020) e La Banda Oriental (2021). De crítica literária publicou A história em seus restos: literatura e exílio no Cone Sul (2004), Escrever de fora: viagem e experiência na narrativa argentina contemporânea (2011) e Estar entre: ensaios de literaturas em trânsito (2019). É editora da revista Grumo (www.salagrumo.com) e tradutora de autores latino-americanos, como Clarice Lispector, Margo Glantz, Tamara Kamenszain e Silviano Santiago.

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