Edição 15 - Dezembro/2021 | Tema
Foto-resenha: performance nascida da poesia
Por qual perspectiva podemos olhar o poeta Manoel de Barros? Este pode ser um ponto de partida, um recorte ou fotografia para entendermos a oficina “Foto-resenha: uma performance a partir da poética de Manoel de Barros”, realizada no mês de outubro, dentro do projeto Literatura Brasileira no XXI, na Biblioteca Parque Villa-Lobos.
Manoel de Barros solicita não ser visto por olhos comuns. Durante a oficina, exercitamos a busca por esse olhar, como uma espécie de experimento, intuindo transver o mundo, o jeito Manoel, mediante seu neologismo, de nos convidar a ver além. Assim, já no primeiro encontro, utilizamos objetos concretos como colheres, garfos, rolo de linha, vidrinho com álcool em gel, monóculo, limões, entre outros, para criarmos outras funcionalidades, para além daquilo que o objeto se propõe, a fim de concretizar certos jogos de palavras que Barros tenciona através da língua vasta.
Ao deslocarmos nossos corpos das cadeiras para o chão, promovemos, além de algum incomodo, a transferência de nossas atitudes cotidianas para outras inabituais, aproximadas a certa liberdade infantil ou até mesmo ao raciocínio do palhaço. Na prática, esse deslocamento tem um impacto importante, pois paramos de olhar de cima para baixo e voltamos o olhar para o chão e com maior proximidade das coisas mais rasteiras. Crianças, ao engatinhar ou rolar no chão, estão em constante contato com o solo, com as formigas, não raro protagonistas dos poemas de Barros. Para além da disponibilidade de rolar no chão, interessou estar próximo ao chão. O solo é central na obra de Manoel, cujas palavras desenham uma geografia, um imaginário do Pantanal, onde passou a maior parte da vida.
Tão inusitado quanto fazer uma oficina de literatura utilizando colheres e sentados no chão, é o valor que trastes, loucos e tudo que socialmente é considerado desimportante, brotam da poesia de Barros. Nesse sentido, o palhaço torna-se uma figura performática útil para se entender Manoel. A menor máscara do mundo – a palhaçaria- é capaz de revelar os pontos mais ridículos de quem se permite vesti-la. A máscara em si já é um objeto de estudo para experimentação de capacidades corporais, imprescindíveis para performances. Ao longo da oficina, produzimos coletivamente uma meia-máscara, em caráter experimental, para que as alunas entrelaçassem as linhas entre o ser e o fazer poético. Em um momento tão delicado, quando a máscara amplia o sentido de sua própria pedagogia, conseguimos, respeitando os protocolos de distanciamento social, passar pelos procedimentos de construção da máscara. Utilizamos gases engessadas, vaselina, cola branca e papel kraft, materiais que as participantes receberam para confecção de suas máscaras em seus lares. Registramos o resultado da máscara em alguns pontos da biblioteca, que trazem a materialidade proposta nas temáticas abordadas por Manoel. Gramado, flores, árvores frutíferas, lagos, céu, crianças e passarinhos. Tudo estava lá, nesta biblioteca que é também parque. E é impressionante ver a máscara, aparentemente inexpressiva, como que reagir em conexão com tais elementos naturais.
Abordar a poesia de Manoel de Barros em diálogo com a palhaçaria, portanto, pressupõe uma leitura que considera o deslocamento do corpo do texto para fora do papel. Esse diálogo entre o corpo do texto e a nossa voz – que também é corpo – evidencia a performance literária que se dá em pelo menos três movimentos do texto dito em voz alta: a leitura, a fala e a escuta. Dessa forma, ler os poemas em voz alta, é uma maneira de transferir o texto para o corpo, provocando um olhar voltado para história que aquele corpo carrega.
Durante a oficina, voltamos o olhar para si e, logo, para nossas histórias, a fim de partilharmos narrativas pessoais acerca da infância. Por não nos conhecermos, espaçou-se uma fenda em doses de invenções e mentiras sobre nossos causos. Essas elaborações ficcionais em caráter de brincadeira, ou mesmo de reparação do que nos ocorreu na infância, trouxe à tona a reflexão sobre verdade x mentira, muito presente na biografia de Manoel. Segundo o poeta, invenção e mentira são indistintas para quem apenas inventa. Essa reflexão, inclusive, sugere o nome de um importante documentário, produzido em 2010, sobre Manoel de Barros chamado Só dez por cento é mentira.
Durante os encontros, pudemos, através de jogos e brincadeiras, resgatar um pouco da criança interior, tão fundamental para saborear o universo de Barros. Na obra Tratado geral das grandezas do ínfimo (2001), há um poema que diz assim: “Tenho candor / por bobagens. / Quando eu crescer eu vou ficar criança”. Sinto que as adultas crescidas que frequentaram a oficina, por aquelas horinhas, se aproximaram do universo do Manoel de Barros e tiveram o privilégio de ficarem crianças.
Por Suelen Santana
Artista-educadora, formada em teatro pela ELT – Escola Livre de Teatro (2010) e Palhaçaria pelo PFPJ – Programa de Formação para Palhaços Jovens dos DOUTORES DA ALEGRIA (2011). Orientou processos colaborativos, entre eles o Grupo Tal&Pá Sênior na ONG ARENART e foi Artista Educadora no PIÁ, Programa de Iniciação Artística da Secretária Municipal de Cultura de São Paulo e no SESC. Na Unifesp, foi monitora de Literatura de Expressão Francesa. Pesquisa o encontro e limites entre múltiplas linguagens considerando o teatro, o circo, a literatura, a dança, a performance e a fotografia.