Edição 14 - Novembro/2021 | Tema
Inspiração Luiz Gama: chama
O dia 4 de setembro de 2021 ficará gravado em minha memória.
Meses antes, quando elaborei a oficina “Inspiração Luiz Gama: escrever sobre si, o Brasil e o mundo hoje”, encontrava-me, como milhões de pessoas em nosso país e no planeta, ainda em obediente isolamento. Todos trancados numa aeronave ou submarino, vivendo ou testemunhando dramas explícitos, adivinhando ou ignorando dramas ocultos. Um inesperado silêncio ganhara o mundo... Rude teste para meu Sol em Touro, mais do que nunca obrigado a domar a impaciência da graciosa Lua em Gêmeos, a qual, segundo linguagem dos astros, inclina à curiosidade em vários campos do saber, à atração pela palavra oral e escrita, pelas múltiplas formas de comunicação, este caminho régio para o encontro com o Outro, feito de ruídos e movimento. Resolvi, então, apostar e, sem titubear, propus uma atividade presencial, acreditando já estarem próximas as condições seguras para confrontar o mundo real, não mais pelas janela-tela do computador que expandiu as possibilidades de contato rompeu fronteiras, ignorou fusos horários. Ficávamos “juntos”, mas “separados”....
No dia 4 de setembro de 2021, início de nossos encontros, tive a sensação indescritível de quem deveria reaprender uma certa forma de liberdade. De movimento. De olhar e perceber. De cruzar pessoas em seu caminho. De ouvir a música de vozes humanas, o canto dos pássaros, os automóveis. Mais de um ano e meio sem quase sair de casa, sem pisar em sala de aula, em espaços culturais. Atravessei a cidade e às 9h40 desci do táxi na porta do Parque da Juventude e caminhei uns 200 metros até a Biblioteca São Paulo, desde seu início, construída a partir de conceitos inovadores. Não fosse o nome da estação de metrô – Carandiru – difícil lembrar que, naquele terreno, outrora existiu uma penitenciária... Eu avançava admirando a paisagem humana. Fila para entrar na Biblioteca: jovens, meninos e meninas, senhoras e senhores, muitos negras e negros, mas não só. Quais e quantos deles vieram para a oficina?, pensei eu, enquanto me perguntava como seriam tocados pela “inspiração” Luiz Gama, até perceber, nesse diálogo interior, que eu mesma ali começava a ser tocada por tudo e todos os que meus olhos vislumbravam.
A oficina iniciou-se com menos da metade dos inscritos. Lamentei, mas compreendi. Atividades presenciais ainda preocupavam. Mas oito ou nove bravos e prudentes oficineiros dispuseram-se a “levar” seus corpos até a Biblioteca São Paulo. Buscavam conhecer melhor um negro-cidadão notável, nascido no maior país escravocrata das Américas, vida cuja grandeza e excepcionalidade nos espanta, como a trajetória dos heróis, míticos e encarnados: nasceu livre em 1830? escravizado pelo pai? como recuperou sua liberdade? não frequentou escolas? nem a “egrégia” Faculdade de Direito de São Paulo, como andam espalhando por aí? mesmo assim tornou-se reconhecido advogado? conseguiu demonstrar quão pouca “ciência” respaldava o imperante “racismo científico”, segundo o qual africanos e seus descendentes pertenciam à mais inferior e desgraçada das raças humanas? só começou a ler e escrever aos... dezessete anos? ...e doze anos depois fundou a autoria negra com seu livro de sátiras políticas, sociais e raciais Primeiras Trovas Burlescas de Getulino, um marco na história literária e editorial brasileira? jamais abandonou “seu sonho sublime: um Brasil sem reis e sem escravos”? então, além de abolicionista (aliás, o primeiro abolicionista negro) foi também um republicano pioneiro, mas de vinte anos antes da Abolição e da República? teve mesmo amigos e inimigos importantes, uns admirando, outros se enfurecendo com sua ardilosa inteligência e compaixão postas a serviço dos direitos dos “pobres, dos infelizes” e de centenas de escravizados? Incrível, como, a par disso, escrevia para tantos jornais, com sua verve inconfundível inscrevendo sua cor, seu corpo nas linhas traçadas sobre suas ideias e sua própria história de vida, a testemunhar uma História que ainda reverbera nos dias de hoje.
Luiz Gama em movimento, ânsia pela liberdade (de seu corpo, de sua consciência) e pela liberdade da razão e do saber. A curiosidade, a conquista da palavra oral e escrita fundavam a identidade profunda de um exímio comunicador, presente em todas as mídias de seu tempo, fincando a imagem de “extremo democrata”, de defensor do Direito e da liberdade de imprensa na qual denunciava os abusos sofridos pelos escravizados nas mãos de senhores e juízes, bem como os intoleráveis boatos (ou fake news) que circulavam a seu respeito.
Sob inspiração de Luiz Gama e de suas “lições de resistência”, as leituras e discussões nos levaram por muitos caminhos, permitiram tecer múltiplas e inauditas relações: a célebre carta onde o único ex-escravo brasileiro fez o relato de sua vida encontra paralelo com a autobiografia de outro célebre ex-escravo e abolicionista, o norte-americano Frederick Douglass, a pessoa mais fotografada de seu tempo e que, neste momento, constitui um dos núcleos curatoriais da Bienal de São Paulo, visitada no decorrer do mês por alguns oficineiros; o filme Doutor Gama, de Jeferson De, lançado havia pouco, apreciar cenas sob outros ângulos, após leitura de alguns textos; um desenho raro de Raul Pompeia (ou Rapp), ainda jovem estudante de Direito em São Paulo, retratava o abolicionista Luiz Gama no alto de uma coluna – a “Vendôme da Abolição” – em alusão à Lei do Ventre Livre de 1871, desenho que certamente inspirou elementos da obra “Incômodo”, do artista plástico negro Sidney Amaral (1973-2017), painel da escravidão e da liberdade hoje no acervo da Pinacoteca. Por tudo isso e outros tantos, a “chama” de Luiz Gama acendeu-se, como se pode ler na comovente produção de Ghustavo Muniz, no coração dos demais participantes.
O dia 4 de setembro ficará gravado na minha memória. Enquanto me dirigia ao local onde se realizaria a oficina, desfilavam imagens fortes em minha mente: depois de resgatar a liberdade, Luiz Gama alistou-se como soldado e por suposta insubordinação, ficou preso por 39 dias e, segundo ele, “passava as noites e os dias lendo”. Sonhava seguidamente com sua mãe, a mítica Luiza Mahin, e fatos semelhantes lhe eram narrados pelos companheiros de prisão. Numa carta ao filho, Benedito Graco Pinto da Gama, escreveu que “o estudo é o melhor entretenimento e o livro o melhor amigo”. Porém, suas convicções não se resumiram a tais conselhos. Na década de 1870, ao lado de companheiros republicanos e membros da mesma “oficina” maçônica, a Loja América, o ex-escravo autodidata que se tornou homem letrado liderou uma iniciativa pioneira: a fundação de cursos de alfabetização gratuitos para crianças e adultos e a criação da primeira Biblioteca Popular na capital paulista.
Assim, não me resta dúvida de que o local para a realização de nossa oficina, não escolhido por mim, foi inspirado aos organizadores pela presença viva deste inigualável brasileiro.
Biblioteca São Paulo, Carandiru: que aí brilhem sempre faíscas do saber e da liberdade!
Ligia Fonseca Ferreira
Veja, a seguir, texto produzido como resultado da oficina "Inspiração Luiz Gama: escrever sobre si, o Brasil e o mundo hoje", ministrada em setembro por Ligia Fonseca Ferreira, dentro da programação da Biblioteca de São Paulo.
Ligia Fonseca Ferreira é docente de graduação e pós-graduação em Letras da Unifesp. Bacharel em Letras e Linguística pela USP. Possui doutorado pela Universidade de Paris 3 sobre vida e obra de Luiz Gama e pós-doutorado no Instituto de Estudos Brasileiros da USP, com pesquisas no campo da epistolografia brasileira e franco-brasileira.