Edição 01 - Outubro/2020 | Tema

Literatura pode ser cura?

Ilustração: Fernando Siniscalchi

Me peguei aqui pensando num meme que li salvo engano no fim do primeiro mês de pandemia. (Se nunca foi simples, o tempo por esses dias se mede com ainda mais dificuldade do que outrora.) Pois bem, nesse meme perdido, o autor ou autora, se é que meme tem autoria, dizia ter descoberto, nos dias em que fora obrigado (ou obrigada) a ficar em casa, que podia muito bem passar sem ir ao bar, sem frequentar salão de beleza, sem ir à praia ou ao parque — não podia, porém, passar sem um livro. Para quem gosta de ler, isso não é nenhuma novidade, mas mesmo as certezas precisam de confirmação de quando em vez. 

Os livros expandem os limites no momento mesmo em que estes foram radicalmente restringidos (pelo menos para algumas pessoas). Nenhuma fronteira geográfica precisa ser respeitada e se pode dar a volta ao mundo em muito menos do que 80 dias. Mas que inocência, não? O que são fronteiras geográficas nacionais diante da possibilidade de deixar a Terra e imaginar outros mundos? Sequer o tempo presente, por mais implacável que se queira, impõe restrições. Vários futuros, utópicos ou distópicos, pouco importa, foram construídos e estão prontos para serem habitados, assim como passados foram recuperados dos esquecimentos ou reinventados, para bem e para mal, importante sempre o julgamento crítico do leitor. 

Os livros que nos desconectam do aqui e do agora, sem maiores pretensões do que nos ajudar a atravessar algumas horas que teimam em não passar, são excelentes remédios, desses que se consomem sem prescrição. Há outros, contudo, mais amargos, dolorosos até, mas nem por isso menos necessários. Não é porque o mundo às vezes mais parece um amontoado de pragas bíblicas — pestes, cataclismas, mortes de inocentes — que o escape é a única saída. Às vezes os livros que nos desassosegam nos ajudam a ver mais longe, a dar forma a algo que sentíamos e que ainda não sabíamos como tornar concreto, o que não deixa de ser, ilusões à parte, um primeiro passo num processo que pode ser ele mesmo terapêutico. 

Por sinal, falando em terapia, não é de se admirar que alguns dos conceitos mais importantes da psicanálise tenham sido formulados por meio de histórias que sobreviveram porque foram preservadas nos objetos que chamamos livros. Não é apenas o terapeuta que é, antes de tudo, um perspicaz crítico literário das narrativas que construímos sobre nós mesmos; se lidos com o cuidado que merecem, os livros dizem muito mais da gente do que nós dizemos deles. Quantas vezes não me peguei rindo ao ler algo que, em qualquer outra circunstância, eu muito provavelmente acharia grotesco? Ou com olhos marejados, um tanto relutantes em se entregar, diante de uma coisa aparentemente boba, que eu sequer sabia que me tocava, mas que revela muito de mim?

O tipo de remédio que os livros são, mais leves ou amargos, isso depende de nós, seus leitores. O certo é que eles podem ser ambos, e o melhor mesmo, eu realmente acho, é nos entregarmos de espírito aberto. 

Por Rodrigo Soares de Cerqueira


Veja, a seguir, textos selecionados e produzidos durante a Oficina Arte poética: demência ou sobrevivência, realizada por Fábio Martinelli Casemiro, na Biblioteca Parque Villa-Lobos em setembro de 2020:

Lucas Lins - Bloquinho

Maria Aparecida A. Fontenele - Vértebras da consciência

Nirlei Maria Oliveira - Dizeres de amor

Nívea Lopes - Bêbado

Rodrigo Soares de Cerqueira, doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp, é autor de "Crítica e memória: um estudo dos textos memorialísticos de Antonio Candido". Atualmente, é Professor Adjunto de Literatura Brasileira na Unifesp, Campus Guarulhos.

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