Edição 37 - Outubro/2023 | Tema
Muito narcisismo para pouca diferença
Debater a presença do autoritarismo na sociedade
brasileira. Construir reflexões acerca do sistema democrático do país,
relacionando-o a polarizações e ataques à democracia. Abordar a linguagem,
enquanto manifestação de anseios e afetos, e a história escravocrata desta
ex-colônia. Uma oficina e muitos verbos para se conjugar.
É sempre urgente discutir nossa constituição enquanto sociedade forjada num contexto de violências. Um povo que não elabora suas fraturas, feridas e rupturas, abdicando de falar sobre o passado, sobretudo quando repleto de períodos ditatoriais, acaba recalcando acontecimentos, os quais, ainda agora, observamos ressurgirem como uma espécie de retorno do recalcado.
Como somos sujeitos constituídos a partir do Outro, segundo a afirmação do psicanalista francês Jacques Lacan, “o inconsciente é estruturado como linguagem”, constatamos o quanto a linguagem nos estrutura e opera na nossa constituição bem como constrói uma realidade e dá expressão aos afetos.
A referência de Freud ao “mal-estar” na civilização e às formações do inconsciente enquanto processo social, articula-se com a proposição lacaniana de que “o inconsciente é a política”. Ou seja, na medida em que o inconsciente é o discurso do Outro, a política enquanto campo em que os conflitos se colocam por meio da palavra em alternativa à guerra, visando, a partir de sua concepção aristotélica, o bem coletivo, público, está articulada diretamente ao laço social que se orienta e é produzido na esfera do discurso. Assim sendo, podemos dizer que nos tornamos políticos bem como nos tornamos sujeitos de fala. Ser falante, ser sujeito, é ser político.
Percebemos, portanto, que a política tanto opera no plano individual e coletivo, por meio da linguagem como representação dos afetos e anseios, quanto produz uma realidade.
Pensando no caráter polarizado, nos discursos de ódio e extremismos cotidianos, hoje ainda mais amplificados nas diversas mídias e redes sociais, qual o efeito sobre o nosso contexto social e político, assim como na produção de nossa realidade enquanto sujeitos, sociedade e cultura? Estariam os laços sociais esgarçados num país em guerra narrativa? Qual o papel do esvaziamento simbólico neste embrutecimento dos discursos? Como isso se reflete na construção dos nossos laços sociais e na nossa constituição enquanto sociedade?
Em "Psicologia das massas e Análise do Eu", Freud discute a “fórmula relativa à constituição libidinal de uma massa”, qual seja, uma quantidade de sujeitos que têm em comum o mesmo objeto no lugar de seu ideal de Eu. Como consequência, identificam-se uns com os outros em seu Eu. O amor fomentado por idealizações desencadeia o processo de identificação do grupo e seus membros entre si e com relação ao seu líder. Assim, para Freud os sujeitos da massa compartilham da ilusão de serem amados igualmente pela figura do líder, justamente esse líder que não ama ninguém. Um líder mítico, objeto desse amor idealizado, simbolizado como uma figura de exceção, como nos coloca Freud ao fundar um pai na origem, o pai primitivo não castrado que tudo pode. É, no fundo, a figura de um gozo possível, aquele que pode fazer aquilo o que não me é possível (mas ele fazendo é como se eu fizesse).
Tal identificação com esse líder que pode gozar, alça tal figura a uma espécie de divinização, acolhendo os anseios dos sujeitos por proteção e também desresponsabilizando a si próprio com relação a implicação no próprio desejo. É que há também, a partir desta identificação de massa, uma anulação, ou um rebaixamento da singularidade e do próprio Eu dos membros do grupo, substituído pela obediência, pelo fascínio da obediência.
A partir destas reflexões, é possível aprofundarmos sobre os motivos que levam, nossa e em outras sociedades, a se identificarem com discursos fascistas ou abertamente violentos e autoritários.
Articulamos, ainda, o quanto a intolerância e a hostilidade, percebida em discursos de ódio, materializam o conceito de Narcisismo das Pequenas Diferenças, descrito por Freud. Nele, o aniquilamento do desejo do outro, da verdade do outro, do entendido como diferente, une os grupos numa espécie de negação do que lhes é também familiar, mas que é absorvido como estrangeiro, fazendo com que o grupo se proteja. Assim, operando como se alguém precisasse encarnar o lugar de antagonismo social, a ser extirpado na construção de uma sociedade sem mal-estar na qual o “outro”, se não for idêntico ao Eu, deve ser percebido como ameaça em potencial. Como afirma Willian Mac-Cormick Maron:
O outro é essa fronteira do eu. A questão gira em torno do que se faz com esse outro, o excluído ou segregado. O vemos como sujeito de seu desejo legítimo ou como resto a ser eliminado? O discurso de ódio é uma das saídas possíveis em uma cultura repressiva que pressupõe a negação e a aniquilação do desejo em uma cega busca pelo gozo. O ódio institui um vínculo, um laço tão forte quanto o amor. Alguns homens lidam melhor com o ódio do que com o amor. Mesmo sendo duas facetas de uma mesma moeda.
O que Freud parece frisar neste conceito, e que está em seu próprio nome, é que as diferenças não são tão grandes, são pequenas. O narcisismo é que é grande.
Podemos constatar os efeitos disso no laço social de
um país dividido, mas também o caráter construtor e expressivo da linguagem com
relação à produção social e à realidade. A política, nesse sentido, opera no
plano individual e coletivo como manifestação destes anseios, o que nos faz
pensar a política para além de um campo de ciência de caráter apenas ideológico.
Política como atravessamento e operação psíquica, a partir de suas tantas
influências no sujeito que também se relaciona com ela em seus sintomas,
pulsões e gozos. Não por acaso, Freud diz que a política se sente na carne.
A oficina, portanto, apontou para uma direção em face da observação, da escuta de estar atento ao que é ́do humano, sem deixar de olhar para si e para o outro.
Longe de propor um fim mágico ao nosso mal-estar, que tem tantas e outras origens, espaços como estes servem para elaborar respostas aos autoritarismos, aniquilamentos e fascismos cotidianos. E de uma forma mais constituída e enlaçada com o coletivo, sem deixarmos nossa singularidade de lado, sem esquecermos do caráter democrático da política, ou seja, sua própria natureza.
Por Rodrigo Silva de Sá Pedro
Rodrigo Silva de Sá Pedro é psicólogo, pós-graduado
em Filosofia e Docência para o Ensino Superior, compositor e psicanalista
membro da Maiêutica Florianópolis- Instituição Psicanalítica. É coordenador de
Extensão em Psicanálise e integrante do grupo seminal da Clínica para
atendimento às pessoas em situações sociais críticas pela mesma instituição.