Edição 38 - Novembro/2023 | Tema
Narrativas de Mulheres Negras à Margem da Democracia Brasileira
A oficina Narrativas de
Mulheres Negras à Margem da Democracia Brasileira
foi construída com base na leitura e análise de textos sobre a produção
literária de autoras afro-brasileiras. Os textos analisados foram poemas e
contos das autoras Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus, Conceição
Evaristo, além de vídeos com performances de poetisas que fazem suas
apresentações em saraus e slams, como Tula Pilar e participantes do Slam
das Minas, Sarau das Pretas entre outras.
Durante muito tempo,
corpos negros femininos foram inscritos nas relações de gênero estabelecidas
pela dominação branca do período escravista. Desde o tráfico negreiro, os africanos
escravizados eram representados apenas como produtos rentáveis, e não como
seres humanos. Ao entrarmos em contato com a obra de Maria Firmina dos Reis,
podemos observar como essas e outras relações se estabeleciam no processo
escravocrata do século XIX. Destacamos aqui o conto A escrava (1887),
lido e comentado na oficina. Nele, a narrativa passa por esses aspectos de uma
mulher escravizada, vista por todos como pessoa louca que foge do seu senhor (encontrada,
em seguida, por uma mulher branca – narradora da história). Esse fato se dá
porque ela não suportava mais as mazelas de sua vida, por ter sido separada de
seus filhos, vendidos ainda pequenos para o trabalho compulsório. É quadro verossímil
e contundente de como funcionavam os processos escravistas da época.
Um dos objetivos da
oficina foi retratar as vivências das mulheres negras por meio de uma
cronologia histórica, passando pelos períodos da escravidão e do pós-abolição.
O exemplo de Carolina Maria de Jesus permitiu que compreendêssemos essa
dinâmica. A obra O quarto de despejo: O diário de uma favelada (1960), ofereceu ferramentas para
tratarmos a figura da empregada doméstica, ocupação que Carolina de Jesus negou.
Mas isso a relegou ao trabalho nas ruas como catadora de lixo reciclável e à
moradia em uma favela, onde vivenciou a violência, a falta de oportunidades e
modos de sobrevivência de uma mulher que foi colocada às margens da sociedade
pelas permanências históricas da escravidão. Junto à leitura de Carolina,
assistimos o vídeo da palestra Eu
empregada doméstica (2017), da poeta e rapper Preta Rara, que possibilitou
compreender as relações do trabalho nesse contexto e como essa profissão, pouco
valorizada no país, ainda é a principal fonte de renda de mulheres negras.
Partindo da realidade
do trabalho doméstico, foi possível chegarmos às análises dos textos de
Conceição Evaristo. A autora elabora sua literatura por meio de diversas
histórias que relatam as experiências de mulheres e em seus múltiplos
contextos, denominados pela escritora, como escrevivências. A partir dessa
nomenclatura, estudamos o conto Maria,
da obra Olhos d’água (2014). Ali, uma
empregada doméstica tem a vida interrompida pelo ódio e desprezo estrutural
pela mulher negra em nossa sociedade, que, além de explorar seu trabalho na
economia do cuidado, ainda considera sua existência descartável.
As novas escritoras
negras identificam, em seu processo de formação, a importância de serem
protagonistas das histórias contadas sobre seu povo, buscando na voz poética
feminina ancestral sua identidade étnico-racial, suas maneiras de produzir
narrativas. Foi possível analisar nos vídeo-performances das poetas mais jovens,
que os temas tratados são outros, mas as opressões continuam e são reinventadas,
como no caso da poeta Midria Pereira que, em seu poema Universidade (2018),
descreve a dificuldade em permanecer nessa instituição pública, sendo mulher
preta e periférica.
Os avanços nos últimos
doze anos são, em grande parte, resultados das políticas de cotas raciais,
fazendo com que as narrativas realizadas pelas próprias mulheres negras se
intensificassem na literatura bem como ocupassem seu espaço na sociedade e na
cultura do país. A realização de oficinas com essa temática, finalmente, vem
contribuir para que mais pessoas se formem e coloquem em prática a lei 10.639/03
que, desde 2003, tornou obrigatório o ensino da história e cultura dos povos
afro-brasileiros. Entrar em contato com as produções literárias feitas por
essas e outras autoras é, portanto, fundamental para compreender as narrativas
das pessoas negras para além da história única, como diz a escritora nigeriana Chimamanda
Adichie
Professora de Língua Portuguesa na rede municipal de São
Paulo e professora/coordenadora da rede cursinho popular Uneafro-Brasil,
movimento sociopolítico de luta pela causa negra, das mulheres e da diversidade
sexual que tem na Educação Popular e na atuação estudantis, no movimento negro
e sindicais seu exercício. Graduada em Letras (Uninove 2010), mestre em Estudos
Literários (UNIFESP 2020), sendo sua pesquisa na temática de mulheres negras
nos saraus e slams da cidade de São Paulo.