Edição 12 - Setembro/2021 | Tema

O peso da caneta

Ilustração: Fernando Siniscalchi

Certa vez perguntei à minha mãe como ela fazia para viajar. E dela ouvi: “Ué, eu observo tudo ao meu redor. Quando o ônibus para eu olho quem é o motorista, a cor, vejo quem sentou do meu lado...” Desse modo não se perde. Contou-me que tal modo de viajar aprendera com seu pai. A pergunta, aparentemente descabida, foi feita por quem se alfabetizou na infância e, por isso, viaja atenta às placas, observando nomes e símbolos. Minha mãe não foi alfabetizada, sequer frequentou a escola, mas ela viaja, faz compras, vai ao banco, faz consultas, toma remédios – inclusive, para não errar nos remédios, usa uma tática parecida com a usada para viajar: observa as caixas, tamanhos, formatos, cores.

Imagine-se num cenário improvável para quem consegue decifrar os códigos deste texto: imagine-se num país estrangeiro em que tudo está escrito numa língua jamais aprendida. Nele, tem que improvisar esforços para se locomover, trabalhar, comunicar-se, e, atenção!, não ser enganado. Nesse exercício de imaginação talvez seja possível perceber as dificuldades e prováveis constrangimentos. Mas, ainda assim, esse país imaginário ainda está distante do território desterritorializado dos analfabetos. Pois, afinal, se é um país estrangeiro, trata-se de um espaço diferente da própria pátria. Já o país de língua estrangeira dos analfabetos é a própria pátria. Sua língua indecifrável, expressa em códigos, torna-se uma barreira para as ações mais básicas e, às vezes, volta-se contra quem não a domina, tornando-o alvo de logradores. 

Quem domina o código dificilmente se dá conta do caráter “fármaco” da caneta – símbolo do código escrito. Tal como a maioria das soluções medicamentosas, a caneta (remédio dos males do analfabetismo) traz na sua fórmula a mistura “veneno/remédio”. Num efeito simbólico, sua má manipulação pode acabar em envenenamento e, até mesmo, em morte. Pode-se falar da morte simbólica de milhões de brasileiros alijados dos bancos escolares, relegados à invisibilidade, de modo que nem são considerados pelo sistema de burocracia interminável. Falo de mais de dez milhões de brasileiros que não leem nem escrevem, mas mesmo assim precisam lidar com coisas por escrito: mercadorias, receitas, meios de comunicação, contas, aplicativos, formulários para agendamento de vacina. Tudo ou quase tudo é feito como se os analfabetos não existissem. Assim, diante das consequências da ausência de consideração, em muitas situações a morte não é somente simbólica. 

Pessoas como minha mãe foram forçadas a aprender outros modos de ler o mundo que não fossem por meio do alfabeto. Nas palavras de Eclea Bosi, elas são “privadas do saber oficial, da cultura letrada”, restando-lhes “a esperteza, a improvisação, o saber da experiência tão desprezada nos idosos, nas mulheres. É a teia diária que se recomeça todas as manhãs”. A esperteza e a improvisação podem garantir a sobrevivência, mas nem sempre garantem uma vida com dignidade.

Considerando o emaranhado de improvisações a que são sujeitas as pessoas não alfabetizadas, surgiu a ideia da oficina “Analfabetos personagens da literatura: do estigma à vida”, com a proposta de refletir sobre aqueles que viveram ou vivem alheios à decifração dos códigos escritos. A oficina promoveu, junto aos participantes, a produção de textos breves de variados gêneros (contos, cartas, páginas de diário, crônicas e poesias) e gerar uma escrita criativa (pessoal ou ficcional), de modo a abordar o analfabeto enquanto personagem literário, estigma cultural e sujeito social, tendo como inspiração textos analisados e discutidos em cada encontro. Daí o escopo de alcançar o analfabeto como sujeito social e não como um mero adjetivo ou estatística de um país no interminável ainda do “em desenvolvimento” – a ponto de a educação jamais ter chegado a todos. 

Personagens da literatura e da realidade se misturaram, tanto nas discussões quanto nas produções. Assim, ora ou outra a voz do Sr. Antônio (cuja vida se passa no interior da Bahia) ressoava: “eu tomei prejuízo mode gente esperto e [...] eu não queria discutir. Não discuti com ninguém. As pessoa que me deve eu nunca joguei praga, eu sempre peço a Deus pra não faltar o meu. Eles, Deus faz o que quiser, mas prejuízo já tomei muito, muito mesmo”. E se misturava com passagens da história de Fabiano, de Vidas Secas: “Fabiano percorreu as lojas, escolhendo o pano, regateando um tostão em côvado, receoso de ser enganado. Andava irresoluto, uma longa desconfiança dava-lhe gestos oblíquos. A tarde puxou o dinheiro, meio tentado, e logo se arrependeu, certo de que todos os caixeiros furtavam no preço e na medida [...]”. Em ambas as situações notamos os prejuízos causados pela condição de analfabeto e do recorrente medo de ser trapaceado. 

Nessa mistura entre vida e literatura, aproximaram-se também as histórias do Sr. Olavo (também do interior da Bahia) e as de Zeca Chapéu Grande, de "Torto Arado", que temem o constrangimento ao usar polegar. Se o personagem literário “escondia as mãos com tinta escura quando precisava deixar suas digitais em algum documento”, o Sr. Olavo sempre se recusou a sujar os dedos de tinta, pois conhece bem o estigma relegado aos analfabetos. Conhece tanto que, já adulto, aprendeu com um amigo a assinar o nome. Em suas palavras, não passaria vergonha no dia da eleição, pois assina “como qualquer outro.” A improvisação e a sabedoria do Sr. Olavo vai além de ter aprendido a assinar. Ele conta que manteve um mercadinho por vinte anos, usando variadas táticas para esse feito. Táticas semelhantes às de Sinha Vitória, de "Vidas Secas", que também dava seu jeito para realizar contas na escassez cotidiana. Afinal, nem tudo que é necessário para viver está codificado nos livros. Entendemos isso ao nos lembrarmos de como aprendemos a andar de bicicleta ou quando precisamos subir no telhado para tapar uma goteira. 

As vivências desses sujeitos/personagens aproximam-se nas agruras que a ausência da alfabetização provoca. Não por acaso, assemelham-se também quando observamos estratégias e táticas de sobrevivência, pois as experiências são parecidas mesmo em sua multiplicidade. Há nisso uma quebra da fronteira entre realidade e ficção, afinal, como afirma Wolfgang Iser, “há no texto ficcional muita realidade que não só deve ser identificável como realidade social, mas também pode ser de ordem sentimental e emocional”. O mesmo autor ainda observa: “realidades por certo diversas não são ficções, nem tampouco se transformam em tais pelo fato de entrarem na apresentação de textos ficcionais.” Ou seja, o que lemos em "Os Analphabetos" (1928), de João Gumes, "Vidas Secas" (1938), de Graciliano Ramos, "Becos da Memória" (2006), de Conceição Evaristo, e "Torto Arado" (2019), de Itamar Vieira Junior – os livros selecionados para discussão – dentre tantas outras obras, não deixam de ser questões sérias da nossa sociedade por estarem na ficção. Por vezes, só são mais suportáveis porque a ficção pode tornar a realidade um pouco mais amena diante da dureza absurda da vida. 

Ao longo da oficina e dos estudos sobre “analfabetos personagens”, procurei desvendar perspectivas diversas acerca do analfabetismo através da ficção e de entrevistas com analfabetos (entrevistas que foram feitas por mim em trabalho de campo durante pesquisa acadêmica baseada nos critérios éticos estabelecidos). Todavia, trata-se de uma temática ainda com muitos impasses e complexidades. No âmbito da literatura, ainda há uma diversidade de personagens a serem estudados. Tomando por base a lacuna de estudos sobre os analfabetos enquanto pessoas e não como estigmas, gostaria de destacar as palavras eloquentes de Paulo Freire, para quem o “[...] analfabetismo não é uma ‘chaga’, nem uma ‘erva daninha’ a ser erradicada, nem tampouco uma enfermidade, mas uma das expressões concretas de uma realidade social injusta”.

Na condição de alfabetizados e, portanto, munidos “do saber oficial, da cultura letrada”, os participantes da oficina aproveitaram para registrar as suas histórias e as dos seus. Cravaram no papel aquilo que, sem o peso das letras, talvez estivesse relegado ao esquecimento. Com o poder das letras foi registrada a história de Firmina, por intermédio de suas netas, ou ainda o talento que D. Isabel possuía para a costura. Poder que foi adquirido pelo peso da caneta. Nesse sentido, é preciso dizer que a grande maioria dos analfabetos fez questão que os filhos e netos estudassem. Pois, como dizia meu pai, e o pai de muita gente: “estuda, menina, porque a caneta pesa menos que a enxada”. Em outras palavras, o peso da falta dela pode se arrastar e deixar marcas profundas na vida.

Maurina Lima Silva

Veja, a seguir, texto produzido como resultado da oficina "Analfabetos Personagens da Literatura: do estigma à vida", ministrada em julho por Maurina Lima Silva, dentro da programação da Biblioteca de São Paulo.

Caroline Melo Ribeiro da Costa

João Pedro Souza Dias

Michelle Neres Moreira

Thaina Gremes Carneiro e Raiany P. Gremes

Suelen Santana Silva

Wilgner Murillo da Conceição Costa

Maurina Lima Silva é Licenciada em Letras (Língua Portuguesa e Literaturas) pela Universidade do Estado da Bahia e Mestra em Letras (Estudos Literários) pela UNIFESP. Foi tutora no Programa de Desenvolvimento Acadêmico Abdias Nascimento, do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UNIFESP, orientando a elaboração de projetos de pessoas interessadas em ingressar na pós-graduação. No âmbito da pesquisa, estuda a história da educação e do analfabetismo no Brasil e suas representações literárias. 

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