Edição 44 - Maio/2024 | Tema

O povo brasileiro na literatura, construindo identidades pretas

As literaturas nacionais, assim como outras expressões culturais, contribuem para desenhar a ideia que os indivíduos formam sobre seu país, sobre sua língua e sobre muitos aspectos de sua cultura nacional. Como ilustração, podemos pensar em enunciados como “Minha terra tem palmeiras/ Onde canta o sabiá/ As aves que aqui gorjeiam/ Não gorjeiam como lá”, pertencentes ao poema “Canção do Exílio”, publicado em 1846, de Gonçalves Dias, e que marcam um dos momentos iniciais do romantismo brasileiro, enaltecendo as belezas de uma terra tropical recém independente de Portugal. Podemos somar a esse exemplo os versos “Moro num país tropical abençoado por Deus/ E bonito por natureza”, da canção “País Tropical”, lançada em 1969, de Jorge Ben Jor, e que falam sobre um país de belezas naturais e de um sujeito poético que torce pelo time do Flamengo – um dos clubes de futebol brasileiro com forte presença de pessoas negras em sua torcida. O sujeito ‘construído’ na letra da canção namora uma moça negra chamada Tereza, toca violão e tem um “fusca” – o carro popular da época da ditadura no Brasil.

Os excertos acima fazem parte de certa memória afetiva de leitura ou de vivência, constituem-se em bagagem cultural que é familiar a muitos brasileiros, despertando em nós o sentimento de pertença ou de identidade nacional em maior ou menor grau. Antonio Candido na obra O Romantismo no Brasil (2004) relaciona a estética do romantismo brasileiro à construção do que chama de “sentimento de identidade”, pois esse período literário trouxe temas e paisagens locais, utilizando-se de uma linguagem mais natural que a de períodos anteriores, uma expressão próxima à dos usos linguísticos que o homem de então fazia. As produções do período romântico aproximam os leitores não apenas da literatura, mas também do que era ser “brasileiro”.

A partir deste conceito trazido por Candido, a oficina “O povo brasileiro na literatura, construindo identidades” buscou refletir com os participantes sobre como personagens de origem afrodescendente foram narrados em algumas obras do cânone literário, sobretudo naquelas lidas e estudadas nas escolas tendo como foco principal autores afrodescendentes. A razão desse recorte temático e autoral teve como referência a obra de Darcy Ribeiro O povo brasileiro, a formação e o sentido do Brasil, publicado em 1995. Importante trabalho que aborda as matrizes étnicas formadoras da nossa nação, dentre elas o que Ribeiro chamou de “Brasil Crioulo”, forjado na economia açucareira no nordeste brasileiro fundamentalmente com a mão de obra escravizada.

Durante os encontros, tivemos a oportunidade de apreciar diversas obras de épocas diferentes, que nos fizeram pensar sobre a produção de autores literários de ascendência africana e que, ainda, trazem a escravidão de formas diversas e, por vezes, reatualizadas. Neste Editorial, vamos refletir sobre as leituras que elaboramos em obras de Machado de Assis, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo. Podemos dizer que um dos elementos recorrentes nas obras selecionadas sobre a presença do ‘povo afrobrasileiro’ foi sua relação com o mundo do trabalho.

            Lemos, por exemplo, o conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis, publicado em 1906 no livro Relíquias da Casa Velha. O primeiro parágrafo já é impactante aos olhos do leitor curioso, pois ainda que a escravidão formal já houvesse terminado na época da publicação da obra, sua sombra e a lógica escravagista das relações sociais permanecia. O narrador conta um evento acontecido há 50, quando a escravidão já estava em decadência no Brasil:

 

A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha de flandres. (Machado de Assis, s/p)

 

No contexto do desmonte do sistema escravagista, nos é apresentado o personagem Cândido Neves, o Candinho, uma pessoa que “cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos”, pois não se fixava a empregos formais e estáveis. Candinho, um homem pobre que morava de favor, no ponto alto do conto, circulava pelo Largo da Carioca, pelas Rua do Parto e da Ajuda “à caça” de uma mulher “mulata” escravizada... Machado, com sua cuidadosa ironia, assim se refere ao ofício de “pegar escravos”:

 

Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre [...]. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem. (Machado de Assis, s/p)

 

No conto, interagem indivíduos pobres, alguns em ascensão social, brancos, descendentes de portugueses, homens negros livres entre outros. Todos convivem em uma área pobre da então Capital do país. Há diversas profissões do universo próximo a Candinho mencionadas, dentre elas: costureira, farmacêutico, tipógrafo, caixeiro, fiel de cartório, contínuo de repartição, carteiro, entalhador. Um rico universo de ofícios da passagem do século XIX para XX na cidade do Rio de Janeiro.

Tivemos o prazer de ler textos elaborados por duas grandes autoras mineiras, nos quais foi possível observar aspectos sobre o mundo do trabalho e o universo das trabalhadoras sob o olhar e a escrita de mulheres negras: Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo. Lançamos mão do conceito de “Escrevivência”, construído por Conceição Evaristo (2014), para quem o ato de escrita de mulheres negras se dá como uma ação que busca desfazer a imagem do passado “em que o corpo-voz de mulheres negras escravizadas tinha sua potência de emissão também sob o controle dos escravocratas, homens, mulheres e até crianças. E se ontem nem a voz pertencia às mulheres escravizadas, hoje a letra, a escrita, nos pertencem também.” Ou seja, para a literata e pesquisadora, a escrita de mulheres negras é uma forma de essas mulheres terem sua voz presente nos espaços de poder.

Considerando essa visão sobre a escrita de mulheres afro-descendentes, analisamos a obra Quarto de despejo, diário de uma favelada, (2020/1960), focalizando o modo como a autora conta sua rotina de catadora de material reciclável pelas ruas de São Paulo, e também de escritora que mora em uma casa na favela. Dimensões essas pouco usuais em escritores tradicionalmente estudados na escola:

 

[...] Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês me fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas desagradaveis me fornece os argumentos. (Jesus, 2020, p. 26)

(...)

É que eu estou escrevendo um livro, para vendê-lo. Viso com esse dinheiro comprar um terreno para eu sair da favela. Não tenho tempo para ir na casa de ninguém. (Jesus, 2020, p. 33)

 

Carolina se mostra sempre inconformada com sua condição de moradora de uma favela na cidade mais rica do Brasil. Escrever, para a autora, além de forma de expressão, significa uma maneira de sair da miséria material em que vive com sua família. Dentre muitos aspectos importantes na obra de Carolina, destacamos a construção de sua imagem como mulher negra que gosta de si, gosta de seu cabelo, gosta da cor de sua pele:

 

[...] – É pena você ser preta.

Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rústico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo do branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reencarnações. Eu quero voltar sempre preta. (Jesus, 2020, p.64)

 

A autora se apresenta como preta em um país em que a cor da pele é motivo de discriminação e preconceito cotidiano. Carolina não só reconhece a beleza da pele negra, também elege seu cabelo com marca relevante na construção de sua persona. Essa passagem motiva também outras mulheres a sentirem orgulho de serem negras, se desprendendo de estigmas que impõem um padrão branco de beleza. Reside na passagem uma possibilidade de construção de identificação com muitas leitoras.

De Conceição Evaristo, lemos e discutimos juntos a crônica “Maria”, publicada na coletânea Olhos d’água (2014). O personagem principal é uma trabalhadora que, ao voltar de seu emprego como diarista, reencontra um grande amor no ônibus. O leitor tem a oportunidade de desfrutar de episódios em que o relacionamento amoroso é narrado de forma muito gentil:

 

Ao entrar, um homem levantou lá de trás, do último banco, fazendo um sinal para o trocador. Passou em silêncio, pagando a passagem dele e de Maria. Ela reconheceu o homem. Quanto tempo, que saudades! Como era difícil continuar a vida sem ele. Maria sentou-se na frente. O homem sentou-se a seu lado. Ela se lembrou do passado. Do homem deitado com ela. Da vida dos dois no barraco. Dos primeiros enjoos. Da barriga enorme que todos diziam gêmeos, e da alegria dele. Que bom! Nasceu! Era um menino! E haveria de se tornar um homem. Maria viu, sem olhar, que era o pai de seu filho. (Evaristo, 2014, p. 24)

 

Um dos aspectos levantados pelos oficineiros, sobretudo pelas mulheres, foi a identificação delas com Maria por motivos diversos. Por Maria ser trabalhadora, ter certa independência, ser mãe responsável, ou seja, pelas diversas dimensões do personagem construído na narrativa. Retomando Candido (2004), por meio do texto, o sentimento de identidade com a persona social se constrói. Interessante destacar que os leitores são “informados” de que Maria é uma mulher negra a partir de um acontecimento de violência na narrativa, a cor da pele do personagem não era o condutor da narrativa ainda que essa condição tenha implicações no desenrolar do enredo Assim, o fato de o personagem ser uma mulher, mãe, trabalhadora e que ama é que alicerça a dimensão humana dessa persona construída na crônica.

Evaristo, ao refletir sobre sua escrita, seus personagens e o conceito de escrevivência assim se manifesta: “[...] tenho tido a percepção que, mesmo partindo de uma experiência tão específica, a de uma afro-brasilidade, consigo compor um discurso literário que abarca um sentido de universalidade humana. Percebo, ainda, que experiências específicas convocam as mais diferenciadas pessoas.” (Evaristo, 2020, p.31)

A oficina “O povo brasileiro na literatura, construindo identidades” propiciou momentos de muita leitura, de análise e de discussão de obras literárias que veiculam a visão, a sensibilidade, os interesses de autores que representam uma parcela do povo brasileiro cujas histórias ainda muito pouco foram narradas.

 

Por Lilian Borba

 

Lilian do Rocio Borba possui graduação em Letras-Português pela Universidade Federal do Paraná (1992), doutorado em Linguística, na área de Sociolinguística, pela Universidade Estadual de Campinas (2006) e estágios de pós-doutorado também pela Universidade Estadual de Campinas (2010 e 2014). Nos últimos anos, tem pesquisado sobre os africanos e a formação do português brasileiro. Atuou também em disciplinas relacionadas à prática de leitura e de produção de textos escritos em cursos de nível superior como Pedagogia, Jornalismo, Publicidade, Relações Públicas e Serviço Social. Atualmente, desenvolve pesquisa acadêmica sobre a escrita de mulheres afrodescendentes.

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