Edição 40 - Janeiro/2024 | Tema

O que pesa na prosa?

Ilustração: Fernando Siniscalchi

Antes de responder à pergunta, falemos da noção de “peso” na literatura. Em Seis propostas para o próximo milênio (1988), Italo Calvino afirma que “se a ideia de um mundo constituído de átomos sem peso nos impressiona é porque temos experiência do peso das coisas; assim como não podemos admirar a leveza da linguagem se não soubermos admirar igualmente a linguagem dotada de peso”. Foi tal conceito de peso: o de um navio capaz de flutuar no oceano tanto quanto um bote num naufrágio, ou de um avião capaz de cruzar os céus tanto quanto um pássaro em seus voos migratórios, o que guiou nossa investigação numa oficina que partiu de gêneros “leves”, como o conto e a crônica, para examinar o peso da literatura brasileira contemporânea.

O que pesa, pois, num panorama tão diverso, tão vigoroso, quase impossível de ser mapeado num único recorte, evidenciando uma das questões mais relevantes para qualquer arte, hoje, no cenário da cultura: a curadoria, um impasse incontornável ao se submeter produtos como o livro a contextos de circulação que perpassam por escolhas sempre parciais e violentas, sejam elas de mercado (a noção de literatura para as editoras, para as livrarias, para os leitores), sejam elas de validação (prêmios e eventos literários, a própria crítica literária como parte da construção de um cânone – uma palavra extremamente fora de moda). Tudo isso num momento da indústria em que esses contextos se confundem, e até o “interesse” ou o “afeto” pela leitura (ou qualquer outro sinônimo que possa reger as escolhas individuais de cada leitor) foi capitalizado por algoritmos em páginas e redes sociais?

Encarar o impasse, e abrir a curadoria de textos da oficina para referências literárias (da produção narrativa e da produção crítica) vindas do próprio arcabouço dos oficineiros, e não apenas do ministrante, foi uma das soluções propostas para abranger uma compreensão mais flexível da literatura. Trouxemos para os encontros textos gerados inclusive na própria oficina – uma oficina de literatura, mas também uma oficina de criação literária, com metodologias importadas da escrita criativa, e acima de tudo de leitura, porque qualquer atividade que envolva a teoria e a prática literária são, por excelência, atividades de leitura.

Inspirados pela pesquisa de Regina Dalcatagnè sobre A personagem no romance contemporâneo: 1990 a 2004 (2005), fizemos um levantamento informal, no conto e na crônica, do perfil dos autores e autoras indicados ao principal prêmio literário brasileiro, o famigerado Jabuti, do ano de 2018 (em que a crônica passou a figurar como categoria separada do conto) até o ano de 2023. Traçamos comparativos entre nosso perfil e o perfil construído por Dascastagnè em sua revolucionária pesquisa, mola-mestra para refletir talvez um dos temas mais relevantes hoje na literatura brasileira contemporânea: a crise de representatividade.

Nesse cotejamento, nos deparamos com algumas obviedades a quem está atento ao panorama citado e a algumas das conclusões da pesquisa de Dalcastagnè: na crônica (sob a qual nos detivemos com maior empenho devido à recente atenção dispensada ao gênero pelos júris da Câmara Brasileira do Livro), obtivemos um universo de 43 obras (excetuando coletâneas de textos sem homogeneidade de dados dos seus autores além da cor, caso do livro De bala em prosa: vozes da resistência do genocício negro, de 2020, título que desvirtuaria nossos resultados vez que a maioria dos livros são obras individuais, com apenas um autor ou autora). Nesse universo, para começar com o assunto da etnia, encontramos apenas um livro escrito por uma autora não-branca, em meio a 42 livros de autoria de brancos

Outro dado interessante é de onde vêm esses autores: nenhum é da região Norte; apenas um (curiosamente o ganhador do Jabuti em seu ano) vem da região Centro-Oeste; o Nordeste figura com três indicados; o Sul com cinco; não pudemos levantar a informação da origem de outros quatro autores; mas vem do Sudeste a grande maioria dos indicados: trinta, entre semifinalistas e finalistas, um número que chega a ultrapassar o dobro quando somamos os autores de outra região a figurar entre os concorrentes.

Nem todas as conclusões, entretanto, replicaram os resultados obtidos por Dalcastagnè em seu primeiro olhar sobre os personagens (do romance, no caso dela, tangenciando dados biográficos dos seus autores e autoras). Nossa pesquisa informal logrou revelar uma forte presença das editoras independentes, de pequeno a médio porte, entre os selos que publicaram os livros indicados. Há ainda uma predominância de casas como a Companhia das Letras (com quatro obras indicadas), mas editoras como Padaria dos Livros e Elefante (ambas de São Paulo) já fazem frente ao número de indicações de editoras como a Intrínseca ou a Planeta: cada uma delas com dois livros indicados, empatando no número de obras recorrentes na listagem.

É um sintoma talvez do preconceito de editoras mais consagradas com os gêneros breves, mas preferimos examinar o dado sob uma ótica mais otimista: é também um sintoma de que há editoras interessadas no gênero breve e no seu potencial de revelar o “peso” que a literatura brasileira contemporânea oculta, por baixo da supremacia do romance como gênero mercadológico, na flutuante bolsa de valores da literatura que ora pende para nichos riquíssimos (no sentido analítico e também no lucrativo) como a não-ficção e a ficção especulativa.

Os textos que selecionamos a seguir são mais um peso que colocamos na balança: autores e autoras inéditos, de várias partes do país, que descobriram na narrativa breve uma ferramenta para expressar suas idiossincrasias e revelar a diversidade que pretendíamos atingir nos fazendo aquela pergunta: o que pesa na prosa? Eis neles uma possível resposta.

Por Tiago Germano

 

Tiago Germano é escritor, autor de cinco livros, entre eles o romance "O que pesa no Norte", indicado aos prêmios Oceanos e Jabuti, e "Demônios domésticos", indicado ao Jabuti e vencedor do Prêmio Minuano de Literatura. Seu novo livro, "A índole dos cactos", já está à venda no site http://www.catarse.me/cactos. É também jornalista, com doutorado em escrita criativa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e estágio na School of Drama and Creative Writing da University of East Anglia, na Inglaterra, por onde passaram nomes como Kazuo Ishiguro e Ian McEwan. Nasceu em Picuí, no interior da Paraíba, e mora atualmente na capital, João Pessoa, onde é cofundador do selo independente Matria.

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