Edição 20 - Maio/2022 | Tema
O teatro e os modernistas (1922-1942)
A relação entre alguns modernistas e o teatro é intrigante e bonita. O teatro entrou para a história como sendo a arte que faltou ao movimento inicial do modernismo brasileiro. O tom de lamento dos primeiros historiadores do teatro moderno, quando abordavam a Semana de Arte Moderna, sentindo-se órfãos porque não tivemos nenhum nome representando esta arte no tão importante evento, sempre reverberou nos estudos teatrais. A ideia de atraso do teatro brasileiro – de que começamos o processo de modernização depois (depois das outras artes, muito depois do teatro europeu) e que isso seria algo ruim – é uma ideia forte, que reverbera até hoje quando se pensa sobre o teatro brasileiro.
Tal visão merece ser alterada, agora, cem anos depois da Semana. Quando a revisitamos hoje e revemos a caminhada do teatro brasileiro rumo à modernidade, especialmente a partir dos anos 1920, torna-se inevitável repensar o tom de lamento e a ideia de atraso. É isso que buscamos realizar na oficina “O teatro e os modernistas (1922-1942)”. O convite do prof. Pedro Marques para trazer este assunto, em quatro encontros de três horas cada, instigou-me a perpassar três eixos envolvendo o tema: o contexto teatral do período, ligado aos motivos pelos quais ocorreu a ausência de teatro na Semana; as ideias teatrais de alguns dos literatos modernistas e seus escritos sobre as possibilidades de se levantar um teatro moderno no Brasil; e as peças escritas por Oswald e Mário de Andrade.
Quando aprofundamos o olhar sobre o teatro do período e suas reverberações, essas duas marcas históricas – atraso e lamento – caem por terra. O teatro moderno brasileiro aconteceu de forma dinâmica, instigante, inovadora e bonita quando deveria acontecer, o que se deu na década de 1940 de maneira mais expressiva. Não temos porque lamentar a ausência de uma peça de teatro na Semana, quando o teatro brasileiro dos anos 20 e 30 dos novecentos foi um dos teatros mais vibrantes que nossa história vivenciou. Não era um teatro moderno, isso é fato, mas, então, vem à tona a segunda marca: por que precisávamos que nosso teatro fosse moderno? Não precisávamos, tanto que ele não era. Querer que nossa literatura e nosso teatro estivessem par a par com o que ocorria na Europa é uma visão eurocêntrica e colonial, da qual estamos pouco a pouco lutando para nos desvencilhar. Se não comparamos nosso teatro com o europeu, não estávamos atrasados.
O primeiro encontro da oficina foi dedicado a refletir sobre essas questões, junto com a apresentação do contexto teatral da época e da relação que alguns dos modernistas poderiam ter com o teatro e vieram a ter. A aula buscou valorizar o teatro popular que tínhamos no período, que foi estofo para o teatro moderno que viria a seguir, embora quase ninguém, à época, pudesse imaginar. Escrevo quase ninguém, porque uma pessoa percebeu o manancial poético que a cultura e o teatro populares brasileiros ofereciam aos artistas de teatro moderno – bastava que olhassem um pouco mais para o que é nosso e um pouco menos para o que estava sendo feito do outro lado do Oceano. Essa pessoa foi Antônio de Alcântara Machado.
O segundo encontro teve, então, o objetivo de evidenciar que os modernistas perceberam a necessidade deste olhar para o Brasil, também em relação ao teatro. O nome principal neste sentido foi sem dúvida o de Machado. Amante do teatro, crítico dedicado, arguto e ousado, Machado, no decorrer da carreira como cronista teatral, que vai de 1923 a 1928, localizou o que seria necessário para que o teatro moderno nacional se desenvolvesse: a inspiração formal e temática pelo popular. Machado chamou sua teoria de “teatro bagunça”. Na segunda aula da oficina lemos trechos das crônicas de Machado e também das de Oswald e de Mário, que foram inspirados pelo amigo nessa perspectiva de valorizar o circo e o teatro de revista nacionais.
A terceira aula foi dedicada às peças escritas por Oswald de Andrade e Mário de Andrade. Lemos trechos de O rei da vela e de Café. O rei da vela, escrita em 1933 por Oswald e encenada em 1967 pelo grupo Teatro Oficina de São Paulo, sob direção de José Celso Martinez Corrêa, é um dos marcos mais expressivos do teatro moderno nacional. Falamos sobre como a peça se inspirou no circo, na revista e no melodrama, alcançando o “teatro bagunça” preconizado por Machado. Café, a ópera popular de Mário de Andrade, finalizada em 1942, traz uma dramaturgia altamente inovadora. O autor criou uma ópera coral inspirada nas festas e brincadeiras populares brasileiras, e em sua musicalidade. Este texto ainda não teve uma montagem que desse conta das belezas e especificidades do texto. Esperamos que algum dia esta encenação apareça!
Depois deste mergulho no universo teatral e literário-dramatúrgico dos modernistas, a última aula foi dedicada à prática da escrita criativa. Os participantes da oficina escreveram cada qual um esquete curto, cujo propósito era o de dar conta de uma mini cena, escrita em três horas, a partir de uma dinâmica guiada. O ponto de partida foi o encontro entre duas personagens que se conhecem, mas que não se viam há pelo menos dez anos. A partir deste encontro, incluímos um evento extraordinário e uma tentativa de violência, além do desfecho, que poderia ser alegre ou triste, cômico ou trágico. Fomos lendo as cenas conforme elas foram se compondo, resultando em exercício rico e divertido.
Desta maneira, nestes quatro módulos, a oficina cumpriu o objetivo de trazer à discussão olhares ainda pouco difundidos da relação entre os modernistas e o teatro, além de manter uma visão crítica sobre a historiografia do século XX, que merece ser estudada, mas também repensada, quando avançamos século XXI adentro. Cem anos depois da Semana, que venham olhares ainda mais profundos sobre o que a cultura brasileira pode nos oferecer.
Por Larissa de Oliveira Neves
Professora Livre-Docente do Curso de Artes Cênicas da Unicamp, vinculada ao Departamento de Artes Cênicas e ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena. Tem Pós-Doutorado pela Université Sorbonne Nouvelle (Paris 3) (2016) e Universidade Estadual de Campinas - Unicamp (2008-09); Doutorado em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp (2006), na área de Literatura Brasileira; e mestrado em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp (2002), na área de Literatura e outras produções culturais (Teatro). Tem experiência na área de Teatro, com ênfase em Dramaturgia, Teatro Brasileiro e Cultura Popular. Recentemente teve sua primeira peça publicada: O dia perdido, pela Editora Patuá, em projeto financiado pelo ProAC Editais 2019.