Edição 39 - Dezembro/2023 | Tema
Perspectivas Pindorâmicas: literaturas Indígenas (sempre) contemporâneas
Aprendi com as mais velhas que não escrevemos sozinhas. Quando a caneta dança no papel-árvore-morta, ela dança ao som de muitas vozes. E foi assim que aprendi a ler literaturas indígenas, ouvindo as muitas vozes manifestas no texto. E foi assim que pensei a oficina Perspectivas Pindorâmicas: literaturas Indígenas (sempre) contemporâneas, de maneira a ouvirmos juntas e juntos as vozes ancestrais de uma Pindorama que já existia antes do Brasil. Entre os objetivos da oficina, queria refletir sobre a contemporaneidade e sobre mundos possíveis a partir dos textos literários indígenas. Queria estimular a autonomia na pesquisa e leitura de literaturas indígenas pindorâmicas (do Brasil).
As literaturas indígenas, sempre no plural para demarcar a diversidade dos Povos Originários e seus fazeres artísticos/literários, já existiam antes do aportar das caravelas, antes dos (des)entendimentos ocidentais ou ocidentalizados de literatura alcançarem nossas margens. Foi graças ao fluir da palavra da boca que nossas literaturas, guardadas pela oralidade, resistiram à colonização e sua tentativa de dominação de territórios, corpos e mentes. Seja na língua do colonizador, que reinventamos, ou em línguas indígenas, as literaturas dos povos originários reverberam mais do que o trauma colonial, porque nossas histórias não começaram em 1492 ou em 1500. E se herdamos o trauma colonial, também herdamos estratégias de luta e rexistência (existir resistindo, resistir existindo, reexistir) para construirmos mundos plurais possíveis.
Foi pensando nisso que o primeiro
encontro da oficina começou com uma introdução à diversidade indígena no país, falando
um pouco sobre os mais de 300 povos e mais de 270 línguas indígenas em
Pindorama. Fizemos uma revisão de termos que são importantes ao dialogarmos
sobre questões indígenas no continente. Como o fato de não nos referirmos aos
povos indígenas como “índios”, porque esse termo é um erro do colonizador que ignora
a diversidade dos povos originários e considera como se todos os povos
indígenas fossem a mesma coisa. E conversamos sobre a trajetória das
literaturas indígenas em Pindorama, marcadamente desde a década de 1980. Como
exercício criativo, escrevemos Cartas à Caminha, em resposta à sua carta de
“achamento” desta terra.
Em nosso segundo encontro, abrimos com a leitura das produções do exercício Cartas à Caminha, de onde partimos para falar sobre Diáspora Indígena e Identidade. A Diáspora Indígena envolve um deslocamento forçado da geografia das relações sociais, mas não necessariamente um deslocamento forçado de uma geografia do espaço físico. A Diáspora Indígena envolve o desmembramento da identidade indígena de seu território, que é elemento fundamental da identidade dos povos originários. A terra não pertence aos povos indígenas, os povos originários pertencem à terra. Para este diálogo, trouxemos as obras de Daniel Munduruku e Eliane Potiguara, precursores das literaturas indígenas pindorâmicas contemporâneas, que nos ajudaram a pensar múltiplos entendimentos de identidade. O exercício criativo do dia foi um diálogo com o poema “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias, que era descendente indígena por parte de sua mãe, Vicência Ferreira, que é descrita como “mestiça”. Pensando na Diáspora Indígena, como escrever o exílio não tendo saído de seu próprio território?
Ao conversamos sobre Gonçalves Dias e
como aprendemos literaturas na escola, construímos uma ponte para nosso
terceiro encontro, onde dialogamos sobre a diferença entre literatura
indianista, indigenista e indígena, bem como conversamos sobre a presença (ou
não) das literaturas indígenas nos currículos, nas bibliotecas, nas salas de
aula e em espaços não escolares.
A
presença das literaturas, história e culturas indígenas na escola ainda é
incipiente, apesar dos 15 anos da Lei nº 11.645/2008, que altera a Lei de
Diretrizes e Bases da educação nacional (LDB, Lei nº 9.394/96), modificada pela
Lei nº 10.639/03, e que torna obrigatório o estudo da história e cultura
indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio,
público e particulares. Inclusive, essa oficina também foi pensada como um
movimento que contribuísse com profissionais da educação e suas salas de aula. O
segundo encontro foi dia de aprender com as literaturas de Graça Graúna e
Márcia Wayna Kambeba, grandes escritoras e educadoras indígenas. Com elas
pensamos os ensinamentos da oralidade, dos grafismos, das cestarias e das
águas. E nosso exercício criativo foi voltado para os Saberes da Oralidade, da
memória e nos debruçamos sobre duas perguntas: Qual é a primeira história de
que você se lembra? Se você só pudesse contar uma história para o amanhã, qual
seria?
E
no pensar quais histórias deixaríamos para o amanhã, nosso quarto e último
encontro se voltou para entender que o Futuro é Ancestral. E se não for
Ancestral, provavelmente não será. Conversamos sobre a era geológica em que nos
encontramos, o Antropoceno. No meu entendimento, o Antropoceno se inaugura com
as caravelas em 1492 e deveria se chamar, na verdade, Antroapocalipceno, porque
ele inicia o processo apocalíptico que estamos vivendo. No encontro,
questionamos de qual humanidade estaríamos falando ao discutirmos Antropoceno.
Porque essa classificação de “humanidade” foi negada aos povos indígenas já no
aportar das caravelas. Como foi negada a outros povos subalternizados, como os
povos de África. Então, quando falamos
desse anthropos, desse “homem” do Antropoceno, de quem estamos falando?
Quem causa e quem colhe os desastres do Antroapocalipceno?
O
ocidente vive um tempo linear, que caminha em linha reta para um progresso que
nunca chega. E nunca chegará. O tempo do ocidente implica a noção de que o
passado é sempre pior do que o presente e de que o futuro sempre será melhor,
porque é nele que habita o progresso. E que horas chega esse futuro melhor, se se
segue semeando o fim? Ailton Krenak, último pensador cuja obra trouxemos para o
diálogo em sala, nos faz questionar a monocultura de ser e existir do ocidente,
trazendo o pensamento indígena ancestral para adiar o fim do mundo e para
pensar construções de mundos possíveis. Pensamento que vem demarcando telas,
com diversas e diversos indígenas fazendo uma semeadura poética dos movimentos
de rexistência ancestral. E será que estamos prontas e prontos para esse
exercício de (re)imaginação radical de mundos possíveis? Essa foi a última
proposta de exercício criativo do curso, quebrar a lógica da monocultura do
pensar e ser ocidental e imaginar mundos possíveis. Mundos anticoloniais e
antirracistas. Mundos escritos de urucum e jenipapo, reverberando o pensamento
indígena ancestral que sempre foi vanguarda.
Concluo
esse pequeno texto te convidando a mergulhar nas literaturas indígenas e a fazer
esse exercício de (re)imaginação radical de mundos possíveis. Porque é possível
criá-los. Podemos não ver esses mundos em nosso tempo por aqui, mas podemos
semeá-los. Vamos semear futuros?
Por
Fernanda Vieira
Fernanda Vieira é
Mestiza y Indígena em retomada com raízes paternas em Aracaju (SE); é queer e
carioca (sub)urbana. Atua como escritora, pesquisadora, professora e tradutora.
Está professora efetiva no Departamento de Letras da Universidade do Estado de
Minas Gerais – UEMG/Divinópolis. Foi Visiting Scholar na Boston University
(2019/2020). É doutora e mestra em Estudos de Literatura, na especialidade de
Literaturas de Língua Inglesa, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), com tese sobre Autobiogeografias de escritoras Indígenas. Foi uma das
premiadas do concurso “Nheengatu – Fala bonita: concurso literário para
escritores indígenas” (2020), promovido pelo Instituto Uk’a – Casa dos Saberes
Ancestrais em parceria com a Livraria Maracá. Criou e mantém ikamiaba.com.br,
site voltado para as Literaturas Indígenas de Abya Yala (continente americano).
É bolsista de Produtividade em Pesquisa da UEMG/Divinópolis, com pesquisas
sobre Literaturas Indígenas de mulheres, Futurismos Indígenas e Antropoceno.
Coordena o Laboratório Experimental de Tradução (LETRA) e o grupo de pesquisa
ALDEIA - Artes, Linguagens, Decolonialidades e Epistemologias Indígenas,
Afrodiaspóricas e de África (CNPq). Fernanda Vieira comete textos e possui
poemas, traduções, ensaios, contos e artigos publicados em meios diversos.