Edição 41 - Fevereiro/2024 | Tema

Raízes, travessias e encontros: dois dedos de prosa caipira

Ilustração: Fernando Siniscalchi

Pode a cultura caipira produzir literatura de alto nível? Sim, claro... até porque o nível de uma literatura (se é que essa medida existe) deve passar pela compreensão de que ela, como diz Antonio Candido, é “o sonho acordado das civilizações”... Sonhar acordado, delirar, devanear, contar um causo, sentar ao pé da fogueira, do fogão de lenha e trocar dois dedos de prosa: quem nunca teve medo da mata escura, das assombrações que atravessam nossa infância? Os sonhos que nos perpassam, nossos fantasmas, crenças e valores geralmente não são feitos de concreto e aço... Eles vêm do mato, das florestas, das relações que estabelecemos com nossa ancestralidade e que, por isso, passam pela história de Brasís marcados pela natureza e pelo desafio diante dela.


Darcy Ribeiro em O Povo Brasileiro reconhece que a cultura caipira é parte importante da formação de nosso povo. Mas, afinal, o que é o Caipira? O caipira é o trabalhador rural de uma região de nosso país chamada Paulistânia e que engloba, grosso modo, os estados de São Paulo, Paraná, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e Minas Gerais. Esse trabalhador rural foi se construindo desde o período colonial como um ser independente das políticas estatais (tanto da metrópole portuguesa no período colonial, quanto do estado brasileiro, nos períodos de Império ou República) e sua constituição étnica é atravessada pela mestiçagem entre brancos, indígenas e negros.


Claro que esse processo de mestiçagem foi um processo de violência. O trabalhador rural dos sertões brasileiros foi se inventando e se reinventando à medida que o Brasil se construía em suas estruturas políticas e econômicas sempre pautadas pela exclusão: as histórias, os causos, as prosas são perpassados por marcas de violência racial, de gênero, de classe... Mas são também marcadas pela construção da solidariedade, pelo encontro de diferentes culturas e pela produção de importantes raízes imaginárias que nos organizaram enquanto homens e mulheres do sertão brasileiro.


Eis a proposta da oficina “Dois Dedos de Prosa: o Caipira e a Literatura Brasileira”: resgatarmos as nossas mitologias fundacionais, nossas ancestralidades narrativas a fim de nos reenraizarmos.  Como nos mostra o violeiro Ivan Vilela, no livro Cantando a própria história:


Temos vivido um processo curioso que nos tem chamado a atenção. Apesar de toda a situação de desenraizamento causada pela monocultura no campo e pela monocultura na cidade a partir da supressão das culturas locais em troca  de uma cultura de consumo, sazonal, temos presenciado um renascer das culturas e dos valores locais em várias partes  do país e do mundo. Paralelamente a essa situação, fatores reenraizantes têm surgido, como o já citado ancoramento  de um pensamento ecológico que prega entre outras coisas a preservação da diversidade cultural (VILELA, p.147).

 

 A proposta da oficina era cultivarmos nossos enraizamentos a partir da troca das narrativas caipiras que nos constituem, mas antes, foi necessário compreendermos o caipira a partir de uma abordagem um pouco mais ampla: se o caipira em sua origem é o trabalhador da terra, então se tornou necessário transbordarmos o conceito para além da região da Paulistânia, já que muitos dos oficinandos (mesmo os enraizados em São Paulo) traziam suas experiências mescladas às ancestralidades sertanejas de outras regiões como o Norte e o Nordeste...


Essa ampliação é muito bem-vinda e a própria concepção de cultura caipira nos permite generalizar o leque das experiências, se considerarmos que o caipira (e para nosso encontro, o sertanejo em geral) atravessa a história brasileira não porque se resume ao cultivo estreito de suas tradições, mas justamente porque ele está sempre se reorganizando por meio de novas misturas, confluências, transformações, influências e adaptações.


Se “o sertão é o mundo” (como nos mostra Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas) o sertanejo é sempre um cosmopolita-ancestral que tem seus olhos-natureza como lugar de reflexão e produção simbólica: a experiência do sertanejo atravessa cidades, contradições, contrastes e conflitos para realizar sua travessia rumo ao sentido da vida. O sentido da vida é a canção, é a moda, é o causo, é o encontro... Eis o que o sertanejo canta em seu verso, em sua prosa: canta e conta para humanizar-se. Foi andando pela floresta de Sils Maria (na Suiça) que o filósofo Friedrich Nietzsche escreveu algumas de suas principais obras, em busca de certa potência de humanidade que simplesmente não se bastasse ao mero cultivo das tradições, mas que tomasse as rédeas de sua própria capacidade criativa: em meio à natureza, era preciso reler sua própria cultura, transmutá-la, torcê-la ao seu gosto, adaptando o mundo ao seu desejo de sentido e tendo em vista que o mais potente sentido de humanidade é, necessariamente, a humanização pela construção poética. Seria Nietzsche, um caipira fora do lugar?


Inezita Barrozo, Tião Carreiro, Almir Sater, Ivan Vilela, Rolando Boldrin, Valdomiro Silveira, Afonso Arinos, Tonico e Tinoco, Ascenso Ferreira... Nessa oficina, tanto poeta, tanto violeiro, tanta gente e tanto causo a gente ouviu... É que quando o caipira fala em “dois dedos de prosa”, saiba... Cuidado! Essa prosa leva bem mais tempo que o tempo que a gente tem! Assuntando e assuntando, o caipira (o caboclo, o sertanejo) traz o causo do compadre, da comadre, do coisa ruim, dos bois, dos buritis... Ele conta o que viu, diz o que não viu (mai teve o cumpadi que viu!...), aumenta, não inventa (ou não)... Sempre na incerteza (“não sei, só sei que foi assim”)...  “Ao céu, ao inferno, que importa?” Nesse sertão-mundo, a única verdade é a travessia, a única certeza, o encontro.


Por isso convido todos à leitura dos causos dos oficinandos que participaram da oficina “Dois dedos de Prosa”... É tudo verdade? É tudo mentira? Sei não... “pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda parte”.


Por Fábio Martinelli Casemiro

 

Fábio Martinelli Casemiro é historiador e doutor em teoria literária. Como pesquisador de pós-doutorado na UNIFESP, colaborou na graduação, pós-graduação e extensão. Poeta, músico, professor e atualmente membro em formação psicanalítica pelo Instituto Bergasse. Seus temas de atuação são: Cultura Brasileira, Representações de Natureza na Literatura Brasileira Moderna e Psicanálise.

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