Edição 02 - Novembro/2020 | Tema

Doce e amargo, preto como café

Ilustração: Fernando Siniscalchi

Para alguns, tomar café é apenas um ato de tomar café, que, aliás, é bom até no calor. Outro dia, porém, um amigo me confessou que, quando criança, ouvia da avó o alerta para que não tomasse muito café, ou ficaria preto. E ele parou de tomar café. Tamanha foi a força da advertência da avó que ele chegou à idade adulta sem ingerir a tal bebida preta.

Essa ingênua recordação de infância fez-me perguntar em silêncio: quem teria tanto medo de ficar preto? Aqueles que não são pretos? Ou quem, não sendo tão preto, tem medo de ficar ainda mais preto?

Nós pretos não temos medo de tomar café, temos medo de outras coisas. Porque quem é preto conhece bem essa cor com suas nuances de sabores doce e amargo como café.  Como disse Carolina Maria de Jesus, “a minha [vida], até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro.” 

Depois da confissão do meu amigo, notei que o medo de tomar café é mais comum do que imaginava. Muitas pessoas têm lembranças semelhantes. São histórias geralmente contadas de modo cômico, mas basta nos atentar um pouco para perceber que esses relatos são carregados de violência.

E não para no preto do café. Lembro-me de ter ouvido, há muitos anos, outro alerta com a mesma lógica: se uma mulher preta, quando grávida, bebesse bastante leite, o seu filho poderia nascer mais claro, mais branco. E essas lembranças se multiplicam: mães pretas com filhos brancos haviam conseguido tal façanha por terem “limpado o útero”; o moço preto que iria se casar com a moça clara só podia ser rico. Essas são apenas algumas dentre tantas outras comparações esdrúxulas que se espalham no imaginário popular e que tentam associar o preto a algo ruim, evidenciando a força e a violência do branqueamento racial que outrora tinha bases científicas.

Penso em Luiz Gama, lá no século dezenove, quando era alvo de tentativas de ofensas, sendo chamando de “bode” por causa do preto da sua pele. Ele não só dizia “sou bode mesmo”, como também deixou escrito um poema célebre: “bodes negros, bodes brancos, sejamos todos francos, marram todos, tudo berra; porque tudo é bodarrada!” Gama assumiu o preto da sua pele e satirizou qualquer tentativa de rebaixamento pela cor.

Nessa brincadeira de “certa vez ouvi”, talvez caiba propor um passeio por memórias que não são só minhas. Que são minhas e dos meus, dos meus contemporâneos e dos meus antepassados – algumas que ouvi durante a oficina “Escrever memórias em contos, diários, cartas e poesia”, a qual tive o prazer de conduzir; outras que me vieram enquanto estabelecia as linhas deste texto.

Sobre o preto há tantas memórias. Lembro-me da moça que contou sobre o afeto pelas suas manchinhas pretas no rosto, mas que, quando criança, a mãe queria a todo custo tirá-las com água de arroz – o que para ela eram os rastros do sangue negro do pai que teimavam em aparecer na pele da filha: “a pele vai ficar alva, sem essas pintas”, dizia a mãe com esperança de que a água de arroz fizesse milagre.

Recordo-me de uma criança preta, com sete anos de idade, confusa ao ver uma criança branca, com idade parecida, em prantos quando o irmão a chamava de “neguinha”. E essa mesma criança preta, já mais crescida, menina-moça – lembro-me bem –, depois de ter sido demitida, ouviu a frase consoladora da dona da loja: “preocupa não, você é moreninha, mas é bonita, logo arruma outro emprego”.

O passeio pelas memórias coloca-me diante de um tio preto, cuja história ouvi numa manhã de domingo e chorei, chorei porque o que restava era chorar. A minha mãe contou assim: o tio, chamado João, tinha um coração muito bom – expressão usada por ela para justificar que era homem fácil de ser enganado. Ele trabalhou a vida inteira para uma família de fazendeiros sem ganhar um tostão, somente em troca de comida e do que vestir. Mas não era qualquer trabalho. A mãe falou que uma de suas incumbências consistia em – leia-se na literalidade dos termos – puxar carroça, tal como burro de carga. (Aos desavisados: não é qualquer burro que faz isso, precisa ser de carga). Quando o tio ficou velho, sem forças para puxar a carroça, a família para a qual serviu quase a vida inteira colocou-o num abrigo. Finalmente aposentado, o dinheiro que lhe pertencia ia direto para a administração do lugar. Tio João morreu sem jamais receber salário algum. 

O irmão mais novo, assim que soube do seu destino, foi buscá-lo, mas ele não quis sair, preferiu ficar no abrigo, achava que lá seria mais útil, fazendo pequenos serviços. O tio não queria atrapalhar a vida do irmão, talvez não fosse nem capaz de se adaptar a um tipo de vida que não fosse servindo a um patrão-senhor.

É violento o peso da carroça. É muito violenta a lembrança de um familiar que viveu na subalternidade, preso na experiência da escravidão muitas décadas depois da abolição. Nenhuma palavra que eu escreva dá conta do significado disso. Como disse Conceição Evaristo: “o homem ali, tanto fazia, qualquer branco, sorrindo ou não, é sempre sinhô.”

Continuemos o passeio pelas memórias. Tem a história daquele menino que queria ir para a festa junina da escola com o cabelo escorrido na testa, em forma de franja. Todavia, tal penteado para um preto tem um preço: rasgar a própria carne, fazer buracos no couro cabeludo e na alma.

Por falar em escola, desse lugar salta tantas lembranças. Uma mulher, hoje em dia já mãe de uma menina, contou-me que, quando criança, queria muito dançar quadrilha. Em certo ano estava determinada a cumprir o desejo. Procurou e convenceu alguém que, mesmo sem se mostrar muito disposto para o evento, aceitou ser seu par. Contudo, durante a organização da festa, os dois “sobraram” e foram retirados do ensaio pela diretora da escola. Naquele momento, ela entendeu que a sua beleza e a do seu companheiro de dança não condiziam com a beleza do restante da quadrilha.

É hora de encerrar o passeio, não sem lembrar da menina preta que, aos sete anos de idade, foi morar na casa de uma senhora branca, com seu marido e três filhos brancos. O mais novo, ainda bebê, ficaria aos cuidados da menina preta. Ali não precisaria de pagamento. Pagamento para quê? Ora, a menina seria tratada como se fosse da família. Mas jamais, em nenhuma hipótese, nem sequer em pensamento o neném poderia aparecer com o mais leve arranhão. Ela, com aquela cor de café, estava avisada.

Voltemos à oficina e ao momento de sua realização. A proposta consistia em escrever memórias, ou escreviver, como propôs Conceição Evaristo. Na escrita ou na busca pelas memórias, em certos momentos, depois de passar pelo buraco fundo desse processo, tinha alguém que, entre choro e riso, gritava: “depois disso, vou precisar de terapia” – querendo dizer que, depois de voltar das profundezas da memória, precisará de cura. Quem dera houvesse um remédio que curasse. Mas arrisco a dizer que a escrita da memória é um processo de cura. Ou melhor, é talvez a única cura possível, porque é o que resta. Assim, a memória das experiências de pessoas negras é importante, não somente para o processo de cura de si, mas também para a cura dos outros.

Quem não se identifica com esse processo de cura não precisa se constranger. A literatura negra, a consciência da literatura negra e a escrita da memória negra são importantes não para que todos se identifiquem com elas – definitivamente não se trata disso.  Um dos motivos de sua afirmação e de sua prática consiste na possibilidade do estranhamento. Então estranhe, estranhe tanto a ponto de não querer ser a dona da loja, nem a diretora da escola, nem a mãe do menino sem arranhões, nem tampouco o patrão-senhor do tio João. Que o exercício da memória negra cause estranheza. Que o divertido moço com medo de tomar café para não ficar preto estranhe. Que estranhe não a óbvia conclusão científica ignorada pela sua avó e assimilada por ele. Mas estranhe o porquê do medo. 

E para quem ficou curioso em saber sobre a veracidade dessas memórias pelas quais passeamos juntos, posso dizer, tomando de empréstimo a fala de Conceição Evaristo: “nada aqui é mentira e nada aqui é verdade”. Pois aqui são casos acontecidos na vivência, por isso a dificuldade da precisão – memória e esquecimento se fazem presentes, complementam-se no presente. Se fossem casos inventados seria mais fácil ter certeza e dizer que aconteceram do jeitinho que as palavras representam, sem tirar nem pôr, sem mentira nenhuma. 

Por fim, um manifesto, um desafio: que aprendamos a tomar café com coragem, porque é doce, é amargo e é preto.

Por Maurina Lima Silva

Veja, a seguir, textos selecionados e produzidos durante a Oficina Online Escrever Memórias em Contos, Diários, Cartas e Poesia, realizada por Maurina Lima Silva, na Biblioteca de São Paulo, em setembro de 2020:

Ananda da Luz Ferreira

Jean Piter

Joelma Lins (1)

Joelma Lins (2)

Juliana Lapera

Marcelo Nery Simões Martins

Rivaldo Soares

Suelen Santana (1)

Suelen Santana (2)

Maurina Lima Silva é Licenciada em Letras (Língua Portuguesa e Literaturas) pela Universidade do Estado da Bahia e Mestra em Letras (Estudos Literários) pela UNIFESP. Foi tutora no Programa de Desenvolvimento Acadêmico Abdias Nascimento, do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UNIFESP, orientando a elaboração de projetos de pessoas interessadas em ingressar na pós-graduação. No âmbito da pesquisa, estuda a história da educação e do analfabetismo no Brasil e suas representações literárias. 

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