Publicações | Criação Literária

A dor e a delícia de ver um filme adaptado

Fernando Siniscalchi

Quem ama a literatura e o cinema sabe das dores e das delícias de assistir um filme adaptado. Na maioria das vezes, é decepcionante nos defrontarmos com aquele livro incrível, mas que aparece deturpado, minimizado, diminuído nas telas. Ou então, o filme é tão bom que vamos ao livro e não conseguimos reconhecer no original as imagens que foram, no mínimo, inspiradas nele. E vivemos também as situações em que tanto o livro como o filme nos surpreendem como obras autônomas e criativas. Estas questões estiveram colocadas na oficina Adaptação cinematográfica no Brasil do século XXI, ministrada nos dias 14, 16, 21 e 23 de março de 2023.

Do ponto de vista autoral, o curso levantou questões sobre a lealdade da transposição em relação ao original. A partir de pensadores como Bordwell e Stam, entramos nessa seara que reconhece duas linguagens diferentes e a própria ideia de tradução, de uma para outra, envolvendo criatividade e modificações substanciais para continuar fiel à obra adaptada. Os filmes citam livros e também a si próprios, tecendo referências que constroem novas obras, assim como se afastam do original para manter e atualizar as mensagens.

Quando o século XXI se inicia, o cinema brasileiro vive o boom da retomada, depois de praticamente ter zerado sua produção no início dos anos 90. Dois filmes estreiam nessa época, chamando a atenção por serem adaptações de livros muito bem-sucedidos e elogiados. Lavoura arcaica, escrito por Raduan Nassar, chega às telas em 2001, sob a direção de Luiz Fernando Carvalho e, no ano seguinte, Cidade de Deus, escrito por Paulo Lins, se torna sucesso de público e surpreende o mundo, sob a direção de Fernando Meirelles.

São dois filmes que resultaram em processos diferentes de adaptação. A oficina buscou conhecê-los, desde a motivação dos escritores, passando pelo processo de roteirização, a escolha dos atores e locações, a filmagem, a edição e a recepção inicial. Em paralelo a esta exposição, outros exemplos foram mostrados e confrontados, como os filmes do cinema novo Vidas secas e Macunaíma, com a análise das obras literárias e cinematográficas respectivamente.

Aqui abriu-se o debate sobre as escolhas estéticas e expressivas do movimento da década de 60 e dos tempos atuais. Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios, escrito por Marçal Aquino, ganha as telas sob a direção de Beto Brant, e o curso seguiu este exemplo que vem de uma literatura recente, focada em questões brasileiras atuais.

Contemplamos experiências diversas de adaptação: o filme Blowup, de Antonioni, baseado no conto Las babas del diablo, de Julio Cortázar, e a proposta de Quentin Tarantino de se inspirar em literatura de baixa qualidade e atingir um patamar de excelência com Pulp fiction.

Buscamos também discutir as muitas formas de adaptação: desde aquela que tenta seguir o texto literário com fidelidade canina, até aquele que provoca mudanças substanciais, mas preserva a essência da obra, sob a máxima “transformar o original para não traí-lo”. Numa visão ampla e diversificada do fenômeno, expusemos exemplos do trânsito entre linguagens diferentes, das artes plásticas à literatura, da literatura à música, do teatro ao cinema, pretendendo-se, assim, estimular a criatividade dos alunos e ampliar a noção de adaptação que abrange descrever sons, dar vida às narrativas, descobrir sonoridades a partir de estímulos visuais e assim por diante.

Por fim, promoveu-se o exercício prático de adaptação de um conto ou trecho de romance para cinema, considerando a postura profissional e expressiva do roteirista, seus objetivos e motivações; a partir da compreensão da importância do roteiro no processo de adaptação, exemplos de formatação e apresentação puderam ser vistos em todos os trabalhos na última aula.

https://lbxxi.org.br/arquivos/publicacoes-1144-sonia-regina-da-silva.pdf

https://lbxxi.org.br/arquivos/publicacoes-1144-ricardo-severo.pdf



João Knijnik é roteirista de cinema e TV, desenvolve projetos de eventos empresariais, atividades imersivas e de interação palco/tela, entre outros projetos. Também escreve contos e dá aulas de roteiro, cinema e interações entre palavra, imagem e sons.

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