Edição 32 - Maio/2023 | Tema

A dor e a delícia de ver um filme adaptado

Fernando Siniscalchi

Quem ama a literatura e o cinema sabe das dores e das delícias de assistir um filme adaptado. Na maioria das vezes, é decepcionante nos defrontarmos com aquele livro incrível, mas que aparece deturpado, minimizado, diminuído nas telas. Ou então, o filme é tão bom que vamos ao livro e não conseguimos reconhecer no original as imagens que foram, no mínimo, inspiradas nele. E vivemos também as situações em que tanto o livro como o filme nos surpreendem como obras autônomas e criativas. Estas questões estiveram colocadas na oficina Adaptação cinematográfica no Brasil do século XXI, ministrada nos dias 14, 16, 21 e 23 de março de 2023.

Do ponto de vista autoral, o curso levantou questões sobre a lealdade da transposição em relação ao original. A partir de pensadores como Bordwell e Stam, entramos nessa seara que reconhece duas linguagens diferentes e a própria ideia de tradução, de uma para outra, envolvendo criatividade e modificações substanciais para continuar fiel à obra adaptada. Os filmes citam livros e também a si próprios, tecendo referências que constroem novas obras, assim como se afastam do original para manter e atualizar as mensagens.

Quando o século XXI se inicia, o cinema brasileiro vive o boom da retomada, depois de praticamente ter zerado sua produção no início dos anos 90. Dois filmes estreiam nessa época, chamando a atenção por serem adaptações de livros muito bem-sucedidos e elogiados. Lavoura arcaica, escrito por Raduan Nassar, chega às telas em 2001, sob a direção de Luiz Fernando Carvalho e, no ano seguinte, Cidade de Deus, escrito por Paulo Lins, se torna sucesso de público e surpreende o mundo, sob a direção de Fernando Meirelles.

São dois filmes que resultaram em processos diferentes de adaptação. A oficina buscou conhecê-los, desde a motivação dos escritores, passando pelo processo de roteirização, a escolha dos atores e locações, a filmagem, a edição e a recepção inicial. Em paralelo a esta exposição, outros exemplos foram mostrados e confrontados, como os filmes do cinema novo Vidas secas e Macunaíma, com a análise das obras literárias e cinematográficas respectivamente.

Aqui abriu-se o debate sobre as escolhas estéticas e expressivas do movimento da década de 60 e dos tempos atuais. Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios, escrito por Marçal Aquino, ganha as telas sob a direção de Beto Brant, e o curso seguiu este exemplo que vem de uma literatura recente, focada em questões brasileiras atuais.

Contemplamos experiências diversas de adaptação: o filme Blowup, de Antonioni, baseado no conto Las babas del diablo, de Julio Cortázar, e a proposta de Quentin Tarantino de se inspirar em literatura de baixa qualidade e atingir um patamar de excelência com Pulp fiction.

Buscamos também discutir as muitas formas de adaptação: desde aquela que tenta seguir o texto literário com fidelidade canina, até aquele que provoca mudanças substanciais, mas preserva a essência da obra, sob a máxima “transformar o original para não traí-lo”. Numa visão ampla e diversificada do fenômeno, expusemos exemplos do trânsito entre linguagens diferentes, das artes plásticas à literatura, da literatura à música, do teatro ao cinema, pretendendo-se, assim, estimular a criatividade dos alunos e ampliar a noção de adaptação que abrange descrever sons, dar vida às narrativas, descobrir sonoridades a partir de estímulos visuais e assim por diante.

Por fim, promoveu-se o exercício prático de adaptação de um conto ou trecho de romance para cinema, considerando a postura profissional e expressiva do roteirista, seus objetivos e motivações; a partir da compreensão da importância do roteiro no processo de adaptação, exemplos de formatação e apresentação puderam ser vistos em todos os trabalhos na última aula.

https://lbxxi.org.br/arquivos/publicacoes-1144-sonia-regina-da-silva.pdf

https://lbxxi.org.br/arquivos/publicacoes-1144-ricardo-severo.pdf



João Knijnik é roteirista de cinema e TV, desenvolve projetos de eventos empresariais, atividades imersivas e de interação palco/tela, entre outros projetos. Também escreve contos e dá aulas de roteiro, cinema e interações entre palavra, imagem e sons.

Leia também

A Literatura Negra como herança de um Brasil Crioulo

 Ao pensarmos na formação da literatura nacional e seus marcadores raciais, na maioria das vezes surgem algumas indagações em torno das temáticas que envolvem escritos produzidos por autores negros, além de uma tensão de como classificar essas produções. Resgatando o conceito de Cuti Silv...

Leia Mais!
Amazônias poéticas: culturas, heterogeneidades, hibridismos

Em estudo primoroso, Ana Pizarro (2012) detecta que os escritos sobre Amazônia possuem uma especificidade. A grandiosidade da floresta e a dimensão fluvial saltam aos olhos de quem se defronta com ela. O rio é espaço, moradia, elo entre comunidades. Por ser uma fonte de nutrição para humanos ...

Leia Mais!
Mundos possíveis da ficção sertaneja

Convém reconhecer, desde logo, a imprecisão do título desta oficina. A categoria "prosa sertaneja" não corresponde a uma noção evidente, estanque ou autoexplicativa, sendo necessário conferir-lhe precisão e consistência. No caso, a prosa analisada acomoda textos díspares, escritos em circ...

Leia Mais!
A moda caipira encanta a nova metrópole

Na oficina Relações entre música sertaneja e canção popular urbana, trabalhamos com o cancioneiro sertanejo, observando o diálogo das canções com as transformações da cidade de São Paulo, procurando compreender, a partir do estudo das composições, os processos de assimilação da cultu...

Leia Mais!
Poesia brasileira no XXI: vozes, letras e suportes

Escrever sobre a poesia do século XXI é uma tentação de muitas faces. A face juvenil reuniria seus amigos identificados pela vida e arte. Nós os representantes da geração, compartilhando livros, autores, referenciais e estilos. Tudo tão bonito a ponto de provocar inveja a quem não foi conv...

Leia Mais!
Entre canto e fala: o fogo

Qual o lugar da voz na literatura do século XXI? Qual o papel da performance nos dias de hoje, ela que outrora foi o meio difusor principal da produção poética? Num tempo em que a expressão emanava sobretudo do corpo que se pronuncia diante da audiência. Tempo em que a palavra se apresentava ...

Leia Mais!