Edição 33 - Junho/2023 | Entrevista
A democracia também está nas cartas
A oficina Cartas, história e democracia, ministrada pelo professor e escritor Emerson Tin, convidou seus participantes a um olhar sobre as especificidades da estrutura, atributos e amplitude da carta e de sua atualização em função dos meios de comunicação de que dispomos.
De próprio punho, mais extensas quando redigidas na máquina de escrever ou na brevidade e concisão das mensagens de texto e de voz nos meios digitais, as cartas encerram um tipo de diálogo sem comunicação oral e sem a presença física de seus interlocutores. Seguem uma determinada forma que até hoje contempla, de algum modo, a teorização epistolar da Idade Média, do Tratado do Anônimo de Bolonha, de 1135, segundo o qual a carta é um adequado arranjo de palavras para expressar o sentido pretendido pelo seu remetente e, para tanto, divide-se em 5 partes: saudação, captação da benevolência, narração, petição e conclusão.
Tin chama a atenção para o fato de que, mesmo na mensagem de voz do whatsapp, a captação da benevolência do destinatário é manifestada com expressões como “desculpe te mandar este áudio, mas...” – uma construção retórica nem sempre verdadeira, mas que coloca o remetente numa posição de humildade em relação ao destinatário, preparando-lhe o ânimo e abrindo caminhos para que se alcance o pretendido com a missiva.
Talvez esse aspecto muito tenha contribuído para que certas cartas influíssem e até mudassem o tom, a voz e os rumos da história.
Os argumentos verídicos ou inventados, afinal o gênero epistolar é também literário, o tom mais coloquial, mais próximo da oralidade, em conjunto com o arranjo narrativo pontual, fotográfico até, como referiu Monteiro Lobato, são aspectos que colocam a carta ao alcance de qualquer pessoa, ainda que não saiba escrever – cartas também podem ser ditadas (na Idade Média, a arte de escrever cartas era referida como Ars Dictaminis e dela se incumbiam aqueles que detinham a técnica, sendo-lhes ditado o seu conteúdo).
Pelo teor das cartas, documenta-se a história, desvendam-se crimes, vínculos sociais, políticos, culturais e pessoais são formados, fortalecidos e rompidos, sentimentos se revelam, intenções são esclarecidas, discussões são registradas, vozes tímidas ou intimidadas podem ganhar o mundo. Por seu alcance e indistinta acessibilidade, a carta, que não perde suas características e força nos meios digitais da atualidade, valida-se como ferramenta útil à democracia. As correspondências relacionam-se com o poder e com as pessoas. Circulando de forma lícita ou clandestina, revelam hierarquias, dão ciência, pedem resposta, atravessam fronteiras físicas e intelectuais.
Passando por Homero, Cícero, Plínio Jovem, Sêneca, Justo Lípsio, Caio Junior Victor, Francisco Rodrigues Lobo, Dom Francisco Manuel de Melo, Padre Antonio Vieira, Madame de Sevigne, Monteiro Lobato, Mario de Andrade, a oficina motivou seus participantes não apenas à reflexão, mas ao concreto exercício de escrever cartas, possibilitando a percepção de sua simplicidade e fluência tão natural, bem como de seu alcance.
* Para uma boa imersão na relação entre cartas, história e democracia, vale conferir o acervo que o Instituto Moreira Salles disponibiliza através do blog correio.ims.com.br.