Edição 47 - Agosto/2024 | Entrevista

A multiplicidade do gênero canção

Elis de Almeida Cardoso

Nesta entrevista, o escritor, professor, linguista e músico, Álvaro Antônio Caretta, retoma a origem da palavra caipira - “o homem que corta o mato” – para  trazer uma dimensão nova e instigante sobre o valor da cultura caipira na formação para a formação da cultura brasileira e na contemporaneidade. Caretta reflete ainda sobre a importância da canção como gênero literário e como a leitura da canção popular pode ser uma boa aula de história, quando “a canção se torna um documento, podendo-se estudar por meio dela períodos de nossa história”. Por fim, o professor nos conta sua trajetória até escolher pesquisar a canção: “concomitantemente à formação acadêmica, sempre estudei música. Foi uma estratégia para poder trabalhar com duas artes pelas quais sou apaixonado: a música e a literatura.”

Boa leitura! 

LBXXI: Para começar, poderia nos falar um pouco da sua trajetória de vida, formação e o que o levou a dedicar-se ao estudo da canção popular brasileira? 

Álvaro Antônio Caretta: Em se tratando de trajetória de vida, vou apresentar inicialmente um relato para que sirva de testemunho da condição de um estudante de baixa renda no Brasil. A minha família é migrante do interior e vivíamos em um cortiço no bairro do Brás. Sempre trabalhei de dia e estudei à noite no deficiente ensino público. Estudei muito para conseguir uma vaga na universidade pública, Faculdade de Letras na USP. Aproveitei a oportunidade e me dediquei para ter uma boa formação que me possibilitou ter uma profissão: a de professor de Português. Como gostava muito dessa área, fiz mestrado na própria USP sobre o samba-canção, depois doutorado na mesma instituição, oportunidade em que estudei a Cidade de São Paulo na canção popular, e ainda fiz pós-doutorado na Universidade Nova de Lisboa, estudando o fado. Durante todos esses anos, desde o início da graduação, nunca parei de lecionar, passando pelos ensinos fundamentais, médios e superiores em instituições privadas e públicas, até ser concursado na UNIFESP como professor de leitura e produção de textos. São 40 anos de carreira.

Escolhi pesquisar sobre canção porque, concomitantemente à formação acadêmica, sempre estudei música. Foi uma estratégia para poder trabalhar com duas artes pelas quais sou apaixonado: a música e a literatura.

Agora estou me dedicando à Literatura, acabei de publicar um livro de contos, “Amores Amaros”, e estou terminando um romance histórico sobre a cidade de São Paulo. Espero que seja uma carreira longa e prazerosa como a de professor.

LBXXI: O que é gênero de canção como modalidade literária?

Álvaro Antônio Caretta: Seria talvez afirmar a canção como um gênero da literatura, juntamente com a poesia, o conto, o romance, a crônica ou o drama. Infelizmente, a canção, por ser um gênero popular e oral, foi durante muito tempo tratada como subgênero literário, não digno de ser estudado nas universidades. Esse pensamento prevaleceu porque só se entendia literatura como modalidade escrita, sendo o restante de menor valor. Esse preconceito, como todos, é fruto da ignorância. Primeiro, é sabido, que a poesia é filha da música, basta retomarmos os trovadores medievais. Se aquela se separou desta na literatura elitista, isso não aconteceu no rico cancioneiro popular. Segundo, não havia conhecimento teórico para dar conta da riqueza textual da canção. Inicialmente só se estudava a letra, e somente do ponto de vista estilístico e, por incrível que pareça, da norma culta. Esse cenário se modificou com as propostas discursivas para o estudo dos gêneros e do sentido. Podemos citar os trabalhos do Professor Luiz Tatit, na Semiótica; José Miguel Wisnick, na literatura e também a abordagem dialógico-discursiva que proponho em meus trabalhos.  Além dos historiadores que viram na canção popular documentos para compreender os períodos históricos.

Atualmente, a canção já pode ser estudada em sua plenitude como um texto lítero-musical.    No que toca ao seu valor literário, basta lembrarmos que Bob Dylan recebeu um prêmio Nobel em reconhecimento ao valor poético de suas canções.

LBXXI: Retomar a origem da palavra caipira - “o homem que corta o mato” - pode nos trazer uma dimensão nova e instigante. Poderia falar sobre o valor da cultura caipira para a formação da cultura brasileira?

Álvaro Antônio Caretta: Imensurável. Não só da cultura, mas do próprio território e da sociedade brasileira ao desbravar o sertão. Isso está muito bem representado na admirável obra “O povo brasileiro”, de Darcy Ribeiro, no qual o autor reservou um capítulo exclusivamente para tratar do caipira. A cultura caipira se desenvolveu no processo de interiorização do Brasil, onde era necessário viajar em lombo de mulas e cortar o mato para abrir as trilhas e assentamentos - caa (mato) pir (que corta), aqueles que cortavam o mato. Nessa aventura ocorreram maravilhosos processos culturais como os hábitos cotidianos de alimentação, moradia e, particularmente, as modas cantadas à beira das fogueiras. Além da miscigenação dos brancos com os povos originários, oscaboclos (caa- boc) homem que tem casa no mato, preservando essa cultura até hoje em nossa sociedade. Outro aspecto é a catequização por parte dos jesuítas que se utilizavam da viola portuguesa e dos ritmos musicais como o cururu e o cateretê para passar os valores do catolicismo às populações originárias do interior do Brasil.

LBXXI: Sua oficina propiciou, sobretudo, a compreensão das relações entre a cultura caipira e a canção popular urbana, que se deu por meio da música sertaneja. Quais foram os ‘meios de transporte’ – ou em outras palavras, a combinação de fatores - para a entrada da canção caipira no mercado da cultura urbana?

Álvaro Antônio Caretta: Na década de 1930, o processo de urbanização de São Paulo não era consequência somente do crescimento da cidade, mas também do desenvolvimento dos meios de comunicação, que atraíam as áreas rurais para a esfera de influência da cidade. A metropolização da cidade de São Paulo provocou uma movimentação social geradora de novas relações que possibilitaram a criação de uma cultura musical sertaneja urbana. O grande fluxo migratório do interior, a necessidade do mercado fonográfico de agradar a esse público e ampliar sua audiência, o surgimento de novos artistas, assim como a vertiginosa transformação da cidade que inspirava sentimentos tanto progressistas quanto saudosistas formaram as condições ideais para o desenvolvimento de uma música sertaneja.

LBXXI: Uma outra questão decorre desta: de que forma a cultura caipira, em especial a canção, passa a ler a cultura urbana?

Álvaro Antônio Caretta: Os artistas souberam tirar proveito de forma criativa desse diálogo entre a cultura urbana e a caipira. O primeiro ponto a se destacar era o tratamento pejorativo dado ao caipira, na esteira da visão propagada pela figura do Jeca Tatu, mas a perspicácia do caipira fez com que ele invertesse isso e passasse a se caricaturizar para ganhar audiência e para criticar a cidade grande, seus tipos e costumes. Um exemplo disso está na canção “Bonde Camarão”, um grande sucesso de Cornélio Pires. Outro aspecto muito marcante são as canções que tratam da nostalgia da terra natal que o caipira cantava em suas modas de viola, acompanhadas também pelo tema do fugere urbem, em que se valorizava a simplicidade da vida caipira em contraposição à vida urbana.

LBXXI: Sobre o valor discursivo da canção na história da sociedade: é certo que a leitura da canção popular pode ser uma boa aula de história. Como se pode estudar história por meio da canção popular ou de qualquer música?

Álvaro Antônio Caretta: Tratando-se da história do Brasil, a canção sempre ocupou um lugar privilegiado, particularmente no século XX, quando temos o advento da canção popular urbana, veiculada no rádio e no disco. Começaria citando o uso que Getúlio Vargas fez dela para a propaganda do Estado Novo e chegaria até uma outra ditadura, a instituída em 1964, quando os compositores populares fizeram da canção um instrumento de luta. Também em outros períodos, como na Bossa Nova, a canção participou do processo social, até atualmente, com o RAP.  Vista assim, a canção se torna um documento, podendo-se estudar por meio dela períodos de nossa história. É o que fazem muito bem, por exemplo, os historiadores José Geraldo Vinci de Moraes e Marcos Napolitano.

LBXXI: Complementando a pergunta anterior, quais os principais elementos que precisam ser levados em conta para análise de uma canção popular para este fim (estudo da história)?

Álvaro Antônio Caretta: Esses historiadores que citei acima, aproximaram-se das teorias discursivas para a abordagem das canções no estudo da historiografia. Seja na análise das canções como linguagem, seja na relação com o elemento social, a abordagem discursiva permite compreender as intenções do enunciador e o seu posicionamento ideológico por meio da canção. O mais interessante é que isso pode ser estudado levando-se em conta a relação entre a letra e a melodia, elemento fundamental da canção, e outros elementos, como o arranjo, a interpretação, a capa dos discos etc.

LBXXI: Para finalizar, ficamos curiosos: poderia compartilhar conosco sua experiência de ensino de Português em países estrangeiros por meio da canção?

Álvaro Antônio Caretta: Como professor de leitura e produção de textos, tive experiências do ensino de língua portuguesa em outros países, como Portugal e Romênia. Em Portugal, estudamos o fado e a canção popular brasileira, contrapondo os aspectos discursivos e culturais do Português europeu e brasileiro. Já na Romênia, a experiência foi bem inusitada, pois ainda que o romeno seja uma língua latina, ela se distanciou muito do português. Entretanto, os alunos universitários eram de uma turma de língua portuguesa e queriam conhecer o português brasileiro. Muitos gostavam da nossa música popular, assim preparei um curso a partir das canções para trabalhar elementos linguísticos e culturais. Mas o que mais me surpreendeu é que dos estilos que apresentei a eles, o que mais gostaram foi o funk.

LBXXI: Gostaria de acrescentar algo?

Álvaro Antônio Caretta: Apesar de eu não ser historiador, fiz uma pesquisa sobre canções paulistas que representam a cidade de São Paulo na primeira metade do século XX. Para isso, estudei serestas, sambas, marchinhas e modas caipiras que retrataram a São Paulo em seu processo de urbanização, observando a relação entre o discurso nostálgico e o progressista. Pretendo, brevemente, publicar um livro sobre o tema e realizar uma outra oficina.    

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