Edição 45 - Junho/2024 | Entrevista
A voz como instrumento indispensável
Nesta entrevista, Silvio Mansani, que divide seu tempo entre a música, o ensino e a atividade acadêmica, conta como é possível conciliar essas atividades, mas confessa que suas ocupações preferidas são a canção e a poesia. Manzani fala ainda sobre a importância da manutenção das práticas das tradições culturais, em especial, na terras da região Sul do Brasil: "Reviver e incentivar as formas populares de expressão é muito mais do que imitar para ressignificar o próprio fazer."
Confira!
LBXXI: Para começar, você poderia contar um pouco de sua
trajetória como professor, compositor, cantor e violonista? Como foi seu
encontro com o violão?
Silvio Mansani: Eu tinha 10 anos e não havia músicos em casa. O meu
pai comprou a assinatura de uma revista de atividades para crianças que, entre
outras coisas, trazia uma aula de violão a cada edição ensinando a tocar
canções infantis de grupos de artistas mirins da televisão dos anos 80, como
Balão mágico e Trem da alegria. Isso despertou meu interesse pelo instrumento
e, como não havia violão em casa, foram atrás do violão abandonado de um primo
meu em outra cidade. Então, foi um desafio começar sozinho. Às vezes eu saia
pela rua perguntando pra pessoas se elas conheciam alguém que soubesse afinar o
violão pra mim. Foi um desafio começar como autodidata, porque apenas depois de
conseguir os primeiros resultados é que me arrumaram um professor.
LBXXI: Como conciliar suas pesquisas acadêmicas com a sua
produção artística e como elas impactam (ou suportam) seu processo criativo?
Silvio Mansani: Eu comecei a compor canções por volta de 13 anos.
Então, quando entrei na graduação e conheci outros músicos, logo surgiu a ideia
de tocar e participar de festivais com minhas próprias composições e parcerias.
Tive a felicidade de ganhar alguns prêmios logo no início e isso foi um bom
incentivo. Mas viver de música não é fácil, muito menos como compositor. Quando
terminei a licenciatura em música eu tinha que
conciliar a atividade de professor de arte em escola regular com a
atividade de músico. A vantagem era ter liberdade para fazer a música que
desejava, sem ter que me sujeitar às demandas do mercado. A desvantagem era não
ter o tempo adequado para ensaios e viagens. Também não havia tempo disponível
para a cursar uma pós-graduação, projeto que teve de esperar muito tempo. Pra
ser sincero, o mundo acadêmico não é o mais adequado pra criação artística.
Talvez nem mesmo pra pesquisa. Mas no que diz respeito ao estudo da arte, já
foi bem pior. Atualmente, por exemplo, dentro da linha de pesquisa em processos
criativos em música, eu posso planejar uma composição e refletir sobre esse
processo. Há pouco tempo atrás isso seria um sacrilégio. Por outro lado, a
música popular e a canção nunca foram consideradas grandes objetos de pesquisa,
coisa que também mudou um pouco, embora quase não se veja em cursos de música
ou literatura uma cadeira de canção, um espaço institucional sustentado que não
dependa apenas do empenho de um indivíduo. As iniciativas ainda são meio
isoladas. Mas eu não reclamo muito e aproveito a oportunidade para continuar ao
lado das minhas ocupações preferidas: a canção e a poesia. Tento manter essa
estratégia de não me afastar demais da composição, que é o que efetivamente me
interessa. Se não estou compondo, estou pensando nela, como na música de
Gilberto Gil: “Eu vivo tempo todo com ela / Eu vivo o tempo todo pra ela /
Minha musa, musa única / Ela que me faz um navegador”. Não um grande navegador,
mas com certeza um pequeno Aldaz navegador, por lembrar o conto de Guimarães
Rosa.
LBXXI: Você propõe uma discussão sobre as relações que se
materializam entre a música e a poesia. O que cabe entre poesia/música e
canto/fala?
Silvio Mansani: Pra mim, principalmente, cabe a canção. É a resposta
mais óbvia. Mas também toda e qualquer expressão vocal que se dirija para a
arte. O texto falado tem uma musicalidade, tem um ritmo que, se acentuado pode
parar no rap que, aliás é uma sigla para a expressão rythmin and poetry (ritmo
e poesia). É indispensável, porém, tanto para o músico como para o poeta, a
consciência da vocalidade. Se a voz humana for o meio de expressão, então
estamos no terreno da performance vocal, onde será indispensável conhecer esse
instrumento e suas possibilidades poéticas.
LBXXI: Há alguma espécie de desafio para a compreensão do
conceito de musicalidade em poesia?
Silvio Mansani: Pra quem é músico é difícil porque a ideia de
musicalidade em poesia não tem a ver propriamente com música. É muito mais uma
analogia que remete à sensação de sonoridades, seja do som das palavras
(assonância, aliteração), daquilo que resolveram chamar de melodia e ritmo da
fala, seja no plano semântico, quando o poeta lança mão de imagens
sinestésicas. Num primeiro plano, é com certeza um enrosco de terminologia, de
diferentes significados sendo atribuídos à mesma palavra. Mas é um enrosco
histórico bastante longo e fascinante, pois poesia e música vêm se afastando e
se aproximando desde a aurora da civilização, desde que temos notícia.
LBXXI: Sobre o vínculo existente entre música e poesia:
por um lado há semelhanças fundamentais entre ambas, por outro, destacam-se as
diferenças. Quando a palavra se movimenta da página para a entonação, e é
condicionada na sua interpretação, pode-se pensar em termos ganhos e perdas
para o texto, para música, para o poema?
Silvio Mansani: Exatamente, o texto poético escrito pode
alcançar diretamente a recepção. Ele não depende do intérprete. Mas é claro que
isso faz parte da nossa realidade, desse mundo forjado depois de Gutemberg e
que logrou alfabetizar a audiência. O mundo antigo, onde o alfabeto era
tecnologia restrita, dependia muito do intérprete, do orador, do cantor, enfim.
Por outro lado, a sensação é de que as coisas mudam para permanecer, por
exemplo: na Grécia, havia os poemas pra escrever na pedra (epigrama) e os
poemas para cantar ou declamar (mélica e elegia). Hoje, temos os poemas de
livro e as canções. Portanto, eu penso que, claro, pode-se pensar em ganhos e
perdas segundo as virtudes e limitações de cada modo de expressão. Porém, o que
temos, mesmo, são diferentes modos de fazer, cada um com o seu encanto.
LBXXI: O que você
indicaria como boas leituras sobre o tema?
Silvio Mansani: O que me vem à cabeça de imediato é o livro Manuel
Bandeira e a música, de Pedro Marques, onde essas questões são discutidas em
torno de um poeta realmente chave para a questão da relação entre música e
poesia. Manuel Bandeira foi um mestre do verso, sabia como poucos manipular o
ritmo e a sonoridade, fazer brotar a oralidade dentro do verso erudito e,
talvez por isso, foi muito querido dos compositores, que musicaram muitos de
seus poemas. É indispensável também consultar o próprio poeta, através do Itinerário
de pasárgada, ensaio no qual Bandeira faz uma retrospectiva da sua atividade
poética.
LBXXI: Letra de música é necessariamente poesia?
Silvio Mansani: É uma questão importante e desgastada. Talvez porque
seja uma falsa questão, talvez porque dependa de premissas melhor definidas,
como por exemplo, o que é poesia? Qual o seu meio de circulação? Se for o
livro, então teremos que abstrair a lírica antiga e o trovadorismo dos
programas de estudos literários. Talvez seja apenas uma desculpa antiga para
justificar a falta de interesse da academia pela literatura popular. Mas se
entendemos que um texto (em qualquer modo de expressão) pode ou não ser poesia,
aí a questão se assenta sobre outro plano. Eu acredito que muitos textos de
canção se sustentam como poesia escrita, assim como muitos poemas de livro dão
boas canções. A questão é que a natureza vocal
e performática da canção exige um intenso compromisso do texto com o som
da fala, coisa que a poesia escrita não necessariamente precisa ter. O assunto
é delicioso e inconclusivo.
LBXXI: Você nos apresentou algumas tradições culturais
que chegaram à região de Santa Catarina por meio dos imigrantes açorianos –
como a “Ratoeira” e “O Pão-por-Deus”. De que forma estas práticas são retomadas
(ou ressignificadas) e por que é importante reavivá-las nos nossos dias?
Silvio Mansani: Eu acho que o folclore tem o papel significativo de
nos lembrar da função social da arte, da interação dos corpos e,
consequentemente, da importância do corpo e suas demandas para a expressão
artística. Reviver e incentivar as formas populares de expressão é muito mais
do que imitar para ressignificar o próprio fazer. Eu tenho pensado que, se as
práticas artísticas escanteadas dos meios de difusão atual assim estão porque
não se encaixam no sistema produtivo, significa que representam, em si mesmas,
pontos cegos no sistema capitalista. Possíveis refúgios da opressão neoliberal.
Mas as práticas populares também pressupõem menos individualismo e mercado. É
um ótimo lugar para reavivar o fogo, relembrando Agamben.
LBXXI: Há algo que gostaria de acrescentar?
Silvio Mansani: Eu queria agradecer ao convite, às participantes da
oficina que fizeram belas obras vocais inspirados nos contos fantásticos da
ilha de Santa Catarina, recolhidos pelo pesquisador Franklin Cascaes. Queria
agradecer ao professor e compositor Acácio Piedade, que cedeu os fonogramas de
suas obras para piano inspiradas nas histórias de Cascaes, as Bruxólicas, para
pudéssemos fazer nossas experimentações e publicá-las ao final. Agradecer
também ao amigo e pesquisador Rodrigo Moreira pelo seu livro Ratoeira - música
de tradição oral e identidades cultural e pela prontidão para o diálogo e
esclarecimentos.