Edição 46 - Julho/2024 | Entrevista
A poesia e suas formas de existir
Nesta entrevista, os poetas e professores Pedro
Marques e Leonardo Gandolfi tecem uma visão sobre os diversos tipos de poesia nas suas
diferentes formas de composição, meios de transmissão e valorização social, “cada
uma com regras próprias e bem-sucedidas”. Assim, diante das inúmeras possibilidades
de ocorrência da poesia e suas novas formas de fruição, eles comentam como podemos
nos tornar melhores leitores e ouvintes para a poesia feita para se
ouvir, ler e ver: “os leitores que mais vão na direção do poema são aqueles
que não têm preconceito diante da multiplicidade de suportes e formas”, enfatizam.
Por fim, os leitores de poesia, Pedro e Leonardo, elegem as poesias e autores que
marcaram suas vidas!
Confira!
LBXXI: Poderiam comentar sobre a poesia e suas
formas de existir?
Marques e Gandolfi: Ao contrário do que a narrativa histórica convencional estabelece, principalmente a partir do século XIX, a poesia não é uma linha evolutiva do verso cantado para o impresso até chegar ao poema visual interativo, por exemplo. Há diversos tipos de poesia com diferentes formas de composição, meios de transmissão e valorização social acontecendo hoje, cada uma com regras próprias e bem sucedidas. Assim, no Vale do Pajeú (PE), a população cria, declama e escuta poemas super elaborados na oralidade, semelhantes aos gregos da época de Anacreonte, ao mesmo tempo que tem acesso a bibliotecas, pois várias pessoas também são leitoras de autores "livrescos" como Castro Alves ou Fernando Pessoa. Em nossa oficina, abordamos isso a partir do documentário O Silêncio da Noite é que tem sido testemunha das minhas amarguras (2016), de Petrônio Lorena. Mas há a poesia impressa e seriada dos Cadernos Negros, um movimento que, desde 1978, inventa e reinventa literariamente as culturas e as demandas afrobrasileiras no país.
LBXXI: Como pensar a poesia como processo que transita entre a materialidade e a imaterialidade?
Marques e Gandolfi: Esse trânsito pode se dar de muitas maneiras, mas foquemos na audição (disco de vinil, CD ou streaming) e na leitura (livro). No Brasil, desde criança, podemos cantarolar canções nas vozes de Elis Regina ("Romaria") ou Chitãozinho & Xororó ("Evidências"), antes de falarmos com proficiência e muito antes de sermos alfabetizados. Canções que foram escritas e até impressas, mas que, em geral, jamais chegamos a ler, imateriais em nossa memória. Quem quiser ler as letras do Noel Rosa ou da Rita Lee, não vai encontrar um livro, terá no máximo songbooks destinados a músicos, o texto verbal estará colado à cifra e à partitura. Daí o velho costume de materializar as palavras das canções em caderninhos, ouvindo e registrando de próprio punho. Hoje, as pessoas compartilham isso na internet, inclusive gerando erros de notação. Ao mesmo tempo, um Carlos Drummond de Andrade, poeta consagrado em livros cultos, lançou um disco duplo (Antologia Poética, 1978) lendo seus poemas com arranjos musicais. Os poemas, assim, foram convertidos em faixas sonoras, que foram ouvidas, inclusive, pelo rádio por gente que nunca teve um volume de Alguma Poesia (1930) materializado nas mãos. Esse é apenas um caso de trânsito que ultrapassa e, ao mesmo tempo, valoriza o livro como suporte convencional da poesia.
LBXXI: Diante das inúmeras possibilidades
de ocorrência da poesia e suas novas formas de fruição, como nos tornamos melhores
leitores e ouvintes para a poesia feita para se ouvir, ler e ver?
Marques e Gandolfi: Talvez os
leitores que mais vão na direção do poema sejam aqueles que não têm preconceito
diante da multiplicidade de suportes e formas. Ou seja, estar ali diante da
manifestação poética sem pensar que há um suporte ou forma melhor que outra.
Essas diferenças produzem uma riqueza de dicções e modos de existência da
poesia, modos que podem até ser não-verbais, como acontece, só para citar um
exemplo, com o trabalho de Lenora de Barros.
LBXXI: É possível dizer que há tipos de poesia, formas e modalidades que convivem desde a antiguidade e que continuam presentes na atualidade?
Marques e Gandolfi: Sim, a poesia oral sempre existiu como tecnologia verbal desde tempos imemoriais, mas foi sendo marginalizada e subestimada conforme o poder econômico do mundo passou para culturas grafocêntrica, notadamente europeias. A poesia literária, mais nova e só há alguns séculos popularizada em poucos idiomas, afinal a imensa maioria das línguas humanas prescinde de códigos escritos, foi, assim, eleita como centro do que seja a Poesia, como se fosse tecnicamente mais complexa que um mito difundido oral. No entanto, entre nós elas conviveram e se retroalimentam, não sem conflitos difíceis de expor aqui. De um lado, grandes obras literárias, como o Poema Sujo (1976), não aconteceriam sem uma corporeidade vocal, explicitada pelo próprio Ferreira Gullar. Por outro, grandes poetas do repente, do rap ou do slam só foram reconhecidos para além de seus nichos depois de estamparem versos em livros, como sucedeu a Patativa do Assaré (Inspiração nordestina, 1956) e hoje a Renan Inquérito (Poesia pra encher a laje, 2016) ou Mel Duarte (Negra Nua Crua, 2016). O livro, assim, é uma experiência expandida a outras mídias por quem o domina em seus códigos, mas também é a instância legitimadora e catalográfica para quem vem da poesia performática, da poesia como parte verbal da festa de rua, ou da poesia de improviso.
LBXXI: Qual a importância da poesia na cultura contemporânea?
Marques e Gandolfi: A poesia é
uma forma de estar no presente. Para a comunidade japonesa, por exemplo, a
prática do haicai não está necessariamente ligada à publicação de poemas, mas
sim a viver o presente e se relacionar com a passagem do tempo por meio das
estações do ano. No geral, a poesia, mesmo que não traga em primeiro plano uma
mobilização política, se vale de um uso político da língua porque, além de
comunicar, faz outra coisa com a língua. Além disso, a poesia é uma forma de
conhecimento e de criação de acesso para vozes e subjetividades. E só se pode
pensar em cidadania se antes as pessoas tiverem voz e subjetividade.
LBXXI: Até que ponto novos mecanismos digitais
disponíveis e o processo de produção e de recepção de poesia rompem com suportes tradicionais,
como o livro, de se representar o poético, considerando, ainda, o contexto da nossa cultura, muito marcada pela oralidade?
Marques e Gandolfi: O suporte mais tradicional do poema é a própria
matéria dele: a voz. A poesia escrita em linguagem articulada é relativamente
recente na história das culturas. Já a publicação e circulação em livro é
recentíssima, se afirma no século XIX e só se populariza no século XX. De modo
então que tecnologias mais recentes, entre elas as digitais, podem facilitar,
por exemplo, a circulação oral do poema, o que é uma espécie de reencontro da
poesia com suas diversas origens. Mas, enfim, a poesia nunca deixou de ser oral.
A forma escrita convive com a oral, uma não elimina a outra. Uma se alimenta da
outra. E as novas tecnologias, quando bem usadas, incentivam tal encontro.
LBXXI: Poderiam desenvolver um pouco duas ideias expostas durante a oficina, a de que “todo mundo está escrevendo o mesmo livro, o livro da cultura” e “quem escreve muda a língua de lugar”?
Marques e Gandolfi: A poesia é uma arte, um ofício que trabalha com uma materialidade específica e essa materialidade é a língua. E a língua é sempre um acontecimento histórico e tem gravada em si diversas épocas, sendo constituída de camadas. Cada vez que alguém compõe um poema está mexendo nessa língua, nessas camadas, alterando-as, mudando as coisas de lugar, tornando a tradição, isto é, a cultura mais plural.
LBXXI: O que dizer sobre a identidade de um poeta?
Marques e Gandolfi: A cada poema a/o poeta se cria e, portanto, cria sua identidade que é sempre nova, mesmo sendo ancestral. A poesia é uma forte tecnologia de criação de subjetividades, em toda sua gama de ações e representações através de vozes. Por exemplo: desde a sentença de Rimbaud – “O eu é um outro” – até a afirmação de Audre Lorde – “a poesia não é um luxo”. Talvez a/o poeta não tenha exatamente uma voz a ser encontrada, mas sim uma voz (várias) a ser fabricada. O poema é que inventa o poeta.
LBXXI: Que poesia marcou sua vida?
Pedro: A poesia brotou em mim pela canção popular. Venho de uma família musical, com devotados ouvintes de rádio e discos. Era comum as pessoas ficarem comentando a moda de viola de Tonico e Tinoco, o samba de Chico Buarque, o baião de Luiz Gonzaga ou a última balada do Roberto Carlos. Assim, cantar canções e falar sobre seus sentidos, suas imagens, sua graça foi sempre algo normal em casa. Meus pais e tios gostavam de ler livros, mas curiosamente não de poesia. Os versos de Manuel Bandeira ou de Cecília Meireles aprendi a curtir na escola. Não achava tão difícil ler poesia em sala de aula, preparado que fui na canção popular. Mas essa habilidade às vezes ignorada pelos professores, na real, é o normal para a maioria dos nascidos neste país, dono talvez do cancioneiro mais potente da Terra. De todo modo, antes de virar pesquisador e poeta de livro, sempre fui letrista de música cantada.
Leonardo: Para mim a poesia surge quando conheci a obra
de Manuel Bandeira. Simplicidade, beleza, dor, realidade, tudo estava ali em
versos que falavam diretamente comigo. Ainda na infância, aprendi a ver o mundo
por meio da poesia de Bandeira e depois, ao longo do tempo, outros poetas foram
abrindo meus olhos e também meu coração.